«Nada há, realmente, na etimologia ou na história do uso dos termos que imponha a distinção entre ética e moral. Um dos termos vem do grego, o outro do latim e ambos reenviam à ideia de costumes (ethos, mores); no entanto, podemos encontrar um traço distintivo entre eles, consoante acentuemos o que é ‘considerado bom’ ou o que ‘se impõe como obrigatório’. É por convenção que reservarei o termo ética para o objectivo de uma vida realizada sob o signo das acções consideradas boas, e o termo moral para o lado obrigatório, marcado pelas normas, pelas obrigações, pelas interdições, caracterizadas simultaneamente por uma exigência de universalidade e por um efeito de coacção. Facilmente reconheceremos na distinção entre o objectivo de uma vida boa e a obediência às normas, a oposição entre duas heranças; a herança aristotélica, onde a ética se caracteriza pela sua perspectiva teleológica (de telos - fim); e a herança kantiana, onde a moral é definida pelo carácter de obrigação da norma, logo numa perspectiva deontológica (deontológico significa precisamente dever). [...]
Definirei a finalidade ética pelos três termos seguintes: finalidade da vida boa, com e para os outros, nas instituições justas.
Falando, primeiro, da ‘vida boa’, gostaria de sublinhar o modo gramatical desta expressão tipicamente aristotélica. Ainda é o modo do optativo e não o do imperativo […].
A estima de si é o momento reflexivo da praxis: é aapreciar as nossas acções que nós nos apreciamos a nós mesmos como sendo o seu autor.
Passemos ao segundo momento: viver bem com e para os outros. Como é que esta segunda componente da finalidade ética, que designo pelo belo nome de solicitude, se encadeia com a primeira? […].
Que a finalidade da vida boa envolva, de a modo, o sentido de justiça, isso está implícito pela própria noção de outro. O outro é também outro que o tu. Duas asserções estão aqui em jogo: segundo a prime viver bem não se limita às relações interpessoais, mas alarga-se a vida no interior das instituições: de acordo com a segunda, a justiça apresenta traços éticos que estão contidos na solicitude, a saber, uma exigência igualdade de outro tipo que não o da amizade.»
Paul Ricoeur; “Éthique et Morale”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro/Março 1990, 99. 5-8
«Vivemos o nosso quotidiano sem entendermos quase nada do Mundo. Reflectimos pouco sobre o mecanismo que gera a luz solar e que torna a vida possível, a gravidade que nos cola a uma Terra que de outro modo nos projectaria girando para o Espaço, ou sobre os átomos de que somos feitos e de cuja estabilidade dependemos fundamentalmente. Exceptuando as crianças (que não sabem o suficiente para não fazerem as perguntas importantes), poucos somos os que dedicamos algum tempo a indagar porque é que a natureza é assim; de onde veio o cosmos ou se sempre aqui esteve; se um dia o tempo fluirá ao contrário e os efeitos irão preceder as causas; ou se haverá limites definidos para o conhecimento humano. Há crianças, e conheci algumas, que querem saber como é o aspecto dos “buracos negros”; qual é o pedaço de matéria mais pequeno; porque é que nos lembramos do passado e não do futuro; como é que, se inicialmente havia o caos, hoje existe, aparentemente, a ordem; e porque é que há um universo.
Ainda é habitual, na nossa sociedade, os pais e os professores responderem à maioria destas questões com um encolher de ombros, ou com um apelo aos preconceitos religiosos vagamente relembrados. Alguns sentem-se pouco à vontade com temas como estes, porque expressam vivamente as limitações da compreensão humana.
Mas grande parte da filosofia e da ciência tem evoluído através de tais demandas. Um número crescente de adultos querem responder a questões desta natureza, e ocasionalmente obtêm respostas surpreendentes. Equidistantes dos átomos e das estrelas, estamos a expandir os nossos horizontes de exploração para abrangermos tanto o infinitamente pequeno como o infinitamente grande.»
Sagan, Carl, “Introdução”, in Uma Breve História do Tempo, de Stephen Whawking, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988, pp. 11-12.
Radicalidade
«A filosofia poderá ser perspectivada como uma reflexão radical sobre a realidade, sobre o homem e sobre o mundo.
Como reflexão radical a filosofia situa-se no plano de uma racionalidade interpretativa e explicativa. Esta racionalidade interpretativa e explicativa implica que as posições assumidas não se alicercem em crenças ou meras opiniões mas se enraízem numa fundamentação que [...] lhes confira uma justificação consistente.
Por consequência, no âmbito da filosofia não terão sentido atitudes dogmáticas, visto que a dogmatização [...] envolverá necessariamente a ausência de uma fundamentação aberta.»
Sousa, M. C. H. de, As Ilusões da Razão, Porto, Brasília Editora, pp. 17-18.
Universalidade
«Todos sentimos, desde a infância, necessidade de explicar o universo. E construir uma imagem do mundo, compreender como se ordenam todas as coisas em nós e à nossa volta, tem sido sempre a história, o germe e a fonte de toda a filosofia. O homem nunca renuncia ao desejo de conhecer. [...]. A filosofia não é mais do que a tentativa, sempre renascente, do homem que procura explicar a si mesmo a situação que ocupa no universo. [...]
O filósofo traz a esta ânsia de explicação, a sua curiosidade, o seu amor pela certeza intelectual e o seu gosto pela perfeição moral. [...]
O filósofo resume a sua época, mas o seu pensamento não fica encerrado apenas dentro dele. O pensamento de um filósofo é mais uma antecipação do futuro do que o comentário do presente; e logo faz parte do próprio futuro porque contribui directamente para o construir.»
Ducassé, P., As grandes Correntes da Filosofia, Lisboa,
Publ. Europa-América, 6ª edição, s.d., pp. 5-6.
Autonomia
«Que é então filosofia? Comecemos por dizer o que ela não é. Filosofia não é religião, não é ciência — como a físico-química, a matemática, a biologia, a astronomia, etc. — não é arte, não é o «espírito» de tal ou qual raça, de tal ou qual povo — se é que esse «espírito» chega, de facto, a ser alguma coisa, — não é sensibilidade — geral de uma época ou peculiar de uma gens —, não é folclore — isso muito menos — não é sequer, finalmente e em rigor, nem visão do mundo (Weltanschauung) nem história da filosofia.
Filosofia não é religião. O princípio desta, consideradas as coisas um pouco grosso modo, é a autoridade e o seu objecto o «sagrado»; o princípio daquela a razão — considere-se o termo na máxima latitude possível — e o seu objecto o ser — considere-se ainda o termo na máxima latitude possível. [...]
Filosofia não é ciência no sentido em que o são, por exemplo, a físico-química, a matemática, a biologia, etc. Diferem pelo objecto e pelo método. [...] Filosofia não é arte. Quer esta última palavra se empregue no sentido antigo de tecnh, quer no sentido mais moderno e mais restrito de «produção da beleza pela acção do ser consciente». A razão está em que a arte se realiza, à raiz, no singular e no concreto, ao passo que a filosofia pressupõe, sempre, o universal e um certo abstracto. [...]
Filosofia é saber. Um saber geral e gerante; um saber universal e universalizante; um saber que se formula, actu, — ou seja formulável — numa certa ordem coerente de sistema ou, ao menos, de temas maiores (imagem arquitectónica ou musical); um saber reflexo, simultaneamente anterior e posterior às outras formas do saber: anterior porque, fundando-se, as funda; posterior, em parte certamente, porque reflexo».
ANTUNES, Manuel, “Haverá filosofias nacionais?”
in Brotéria. Revista Contemporânea de Cultura, tomo 64, 1957, pp. 42-61