«Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar. Nesta corrida, que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo guarda esse avanço irreparável.»
Albert Camus[1], O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo, Lisboa,
Livros do Brasil, s.d., p. 17.
Nesta frase o filósofo argelino desperta-nos para a seguinte questão: só alguns anos depois de vivermos, de comermos, de respirarmos, de andarmos, etc., é que surge o espanto e ao mesmo tempo o “convite” para reflectirmos sobre isso que fazemos habitualmente ou mesmo mecanicamente. Isto é, a atitude do reflectir, do pensar, do olhar o mundo com “outros olhos” – e que desperta uma certa estranheza em relação ao próprio – só surge muito tempo depois de começarmos a viver. E porquê? Porque é que as duas actividades não surgem no mesmo instante e quando se dá o nascimento? Aliás, se de facto é a alma que comanda o corpo – como já diziam alguns filósofos gregos – como se explica que a faculdade superior da alma (que é o pensamento) só surja tão tarde em relação ao corpo? Esta é mais uma questão a ciência tem procurado revelar. Aqui, o que nos interessa mais é justificar a segunda parte da afirmação de Camus: a vida é uma “corrida para a morte”.
Segundo alguns pensadores, a vida só faz sentido porque existe a morte[2]. É ela que está no fim à nossa espera. Vivemos, trabalhamos, sofremos, alegramo-nos, experimentamos êxitos e fracassos, fazemos esforços e renúncias, procriamos, vamos envelhecendo e sabemos – quase desde o primeiro momento em que experimentamos a sensação de estar vivos – que no fim, está a assustadora morte à nossa espera.
E o que é a morte? Num vulgar dicionário de língua portuguesa, encontramos a seguinte definição:
«Interrupção da vida de um ser ou de um organismo; paragem de todas as funções vitais no corpo humano, falecimento; termo; desaparecimento gradual; fim»[3].
A morte é assim aquilo que dá sentido à própria vida existencial, é ela que nos faz colocar a questão do sentido da vida, que nos “obriga” a viver consciente e autonomamente cada dia que passa, que nos obriga a fazer projectos ou planos de vida, que fixa ideais e possibilita algumas realizações. Por outras palavras, é a ‘esperança’ na morte que vai orientando, justificando e definindo aquilo que fazemos e somos. Ela é, quem sabe, a porta de saída desta forma de vida. Em suma, a morte é então a grande questão do ser humano; ele é o único que tem consciência do seu fim e é com base nesse acontecimento dramático que encontra e dá/encontra “significados” e sentido para a sua vida. Só a morte o faz pensar e pensar é uma actividade que aparece depois do corpo mas também morre “depois” deste. Isto é, a morte do corpo dá-se primeiro que a morte da mente, mesmo que seja por fracções de segundos. Hoje, a ciência diz-nos que a morte só se dá quando o cérebro deixa de emitir sinais, e isso acontece só alguns instantes depois do fim do batimento cardíaco, ou seja, já depois da morte do corpo. A medicina diz-nos que uma pessoa é cadáver só depois da morte cerebral.
Não sabemos o que está depois desse ápice, mas sabemos que foi em função dele que vivemos, que questionámos, que perguntámos pelo sentido da nossa própria existência, embora, no fim, a velha pergunta e inquietação humana encontre sempre no silêncio da morte a derradeira resposta.
Viver é então aprender a morrer, e morrer é tão natural como viver.
Miguel Alexandre Palma Costa
[1] Vulgarmente considerado filósofo francês, mas natural da Argélia, Albert Camus nasceu Mondovi, em 7 de Novembro de 1913 e faleceu, em 1960, em Paris, vítima de um acidente de automóvel. Foi prémio Nobel da Literatura no ano de 1957.
[2] A palavra “sentido” significa «faculdade de experimentar sensações (os cinco sentidos); a faculdade intuitiva de conhecer; o sentido moral (faculdade de distinguir o bem do mal); mas aquilo que aqui interessa é a sua conotação enquanto intenção, propósito ou fim – o sentido da vida.
[3] Dicionário de Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 2004, p. 537.
«Poder-se-á ter a experiência de uma sensação “pura”? É muito duvidoso que mesmo os introspeccionistas treinados com mais afinco tenham atingido tal grau de abstracção, embora muitos falem como se o tivessem conseguido. Certo é que uma pessoa pode prestar atenção a um estímulo que exerça pressão sobre o seu antebraço e descrever exaustivamente as suas sensações, mas, mesmo assim, aquele apresenta-se como uma “figura” projectada contra um fundo de outras sensações; continua, apesar de tudo, a ser percebido em relação a um quadro de referência significativo. Talvez que para a criança recém-nascida, conforme insistia William James, o mundo seja um aglomerado resplandecente e rumorejante de sensações puras sem organização, mas, na altura em que a criança for capaz de nos comunicar as suas experiências, a sua organização perceptiva ter-se-á tornado uma integração de muitas aptidões inconscientes. Qualquer coisa que se aproxime mesmo duma sensação pura constitui para o adulto uma experiência traumática: por vezes ligeiros movimentos da orelha de encontro à almofada produzem um som atroador, como o de carvão deslizando para uma cave ou de aviões aproximando-se. Até que, pela experiência imediata, se localize a origem dessa sensação – que a sensação seja “posta no seu lugar”, por assim dizer – sente-se uma ansiedade crescente. Este dado não se ajusta a qualquer quadro de referência.
Quais são as características dos fenómenos que a maioria das pessoas designam por “fenómenos perceptivos”? As seis características seguintes podem auxiliar-nos a compreender o que o termo para elas significa. 1) Estes fenómenos envolvem a organização dos acontecimentos periféricos e sensoriais - olhando à nossa volta vemos objectos ordenados no espaço, e não simples aglomerações de pontos coloridos; 2) eles manifestam propriedades holísticas de tudo-ou-nada, isto é, um certo agrupamento de pontos ou linhas pode dar origem à percepção completa dum quadrado ou um cubo; 3) revelam constância em grau elevado - uma casa branca parece conservar essa cor apesar das imensas variações de luz à medida que o pino do meio dia se transmuda no crepúsculo e na noite, mas 4) são também amplamente transponíveis - um estímulo triangular pode dirigir-se a muitas partes diferentes da retina sem perturbar a resposta; 5) eles operam selectivamente - para o organismo com fome, os objectos relacionados com a comida assumem qualidades de “figuras”; finalmente, 6) constituem processos muito flexíveis - a configuração regular dum pavimento de azulejos preto e branco assume uma espantosa variedade de organizações temporárias quando o observamos.
Que é que todas estas características tomadas em conjunto implicam relativamente ao significado de “percepção”? O termo parece aplicar-se a) sempre que a experiência subjectiva varia apesar da constância dos fenómenos sensoriais subjacentes, ou b) sempre que essa experiência se mantenha constante apesar das variações dos fenómenos sensoriais. Por outras palavras, o termo “percepção” refere-se a uma série de variáveis que se interpõem entre a estimulação sensorial e a consciência, enquanto o último estado é indicado pela resposta verbal ou outra modalidade de resposta.»
Charles E. OSGOOD, Método e teoria na Psicologia experimental, Lisboa, FCG; pp. 229-230
A Percepção é uma actividade cognitiva através da qual contactamos o mundo. Tem uma característica bem particular que a diferencia das outras formas de conhecimento: exige a presença do objecto, da realidade a conhecer.
É através dos órgãos dos sentidos que nos apercebemos dos sons, dos sabores dos aromas, das cores, das formas, das texturas, do frio e do calor. O modo imediato como nos apercebemos destas informações pode levar-nos a pensar que a percepção é um acto simples, automático, elementar. Contudo, quando estudamos Filosofia e outras áreas do saber vemos que as questões sobre a forma – e o conteúdo daí decorrente – como o ser humano conhece o mundo percorrem a história do pensamento.
Como apreendemos o mundo? Será que os dados fornecidos pelos nossos sentidos correspondem à realidade? Porque é que um objecto que é percepcionado de forma diferente por sujeitos diferentes? O processo do conhecimento é determinado pelo sujeito que conhece ou pelo objecto que é conhecido? Tudo isto são questões para as quais as respostas encontradas não são de todo definitivas.
A última questão é marcada por um grande debate que se organiza em torno de duas perspectivas – o empirismo e o inatismo – protagonizadas por dois filósofos: Jonh Locke (1632-1704) e Imannuel Kant (1724-1804). Para Locke, o conhecimento tem origem na nossa experiência, isto é, o modo como percebemos o mundo é aprendido. Para Kant, são as estruturas inatas do sujeito que marcam e enquadram as experiências sensoriais.
Este debate, que opõe o inato ao adquirido, a natureza à cultura, vai reflectir-se na psicologia. A teoria associacionista, protagonizada por Wundt, vai buscar aos empiristas o fundamento da sua concepção. Tal como para Locke e Hume, a mente é uma “tábua rasa” onde a experiência sensorial inscreve o conhecimento. A percepção é o produto da soma das unidades elementares que são as sensações. Esta concepção é negada pelo gestaltismo. Quando percepcionamos um rosto, não vemos os seus componentes de forma isolada: vemo-lo como um todo organizado e estruturado. Seriam estruturas inatas, portanto comuns a todos os seres humanos, que explicariam o carácter da percepção.
É Piaget que, acompanhando e promovendo os mais modernos debates sobre a questão, ultrapassa a dicotomia que vinha dissociando filósofos e outros investigadores. Rejeita a tese de que a mente é uma “tábua rasa”: as crianças possuem estruturas que possibilitam a percepção e a inteligência. Mas, contudo rejeita o carácter estático e determinista destas estruturas, como era defendido pelos gestaltistas: elas são plásticas, desenvolvendo-se ao longo do tempo, organizando-se de forma a responder às necessidades de adaptação do sujeito.
Podemos dizer que a teoria construtivista de Piaget supera a dicotomia protagonizada pelos associacionistas e gestaltistas: a percepção, tal como a inteligência, é produto da interacção entre o sujeito e o meio. O sujeito não é um elemento passivo: é graças à acção do sujeito sobre o meio que as estruturas da percepção e da inteligência se vão progressivamente construindo. Por outras palavras, o sujeito é activo na formação das percepções: ele procede a uma organização e significação da realidade de acordo com suas estruturas mentais, aprendizagens, experiências, motivações, aptidões, personalidade, etc. A este propósito, Edgar Morin, escreve:
«A percepção visual não é um puro e simples reflexo do que é percebido. O nosso espírito/cérebro está encerrado numa caixa preta: não “vê” as coisas directamente, representa-as a si mesmo no termo de um processo complexo de codificação e tradução; os estímulos luminosos que impressionam a nossa retina são traduzidos, codificados em impulsos que, via os nervos ópticos, vão determinar os processos cerebrais bioquímico-eléctricos que determinam a nossa representação. Mas essa representação é ela própria co-organizada em função de estruturas e estratégias mentais que determinam a coerência e a inteligência da percepção (assim, o nosso espírito restabelece automaticamente a “constância” dos objectos, os quais, conforme se encontram situados perto ou longe do nosso olhar, são enormes ou minúsculos na nossa retina). Por outras palavras, o espírito/cérebro estrutura e organiza representações, isto é, produz uma imagem do real. Essa produção é uma tradução e não uma “reprodução” ou um reflexo. Claro que há impressão na retina, como há impressão na chapa fotográfica, mas é o nosso espírito/cérebro que, a partir das impressões na retina, produz as suas representações. Consequentemente, a percepção é um processo em cadeia que se completa na projecção, sob a forma de visão, da representação mental sobre os fenómenos exteriores de que provém.»
Morin, E., O Método, Mem Martins, Publ. Europa-América, 1987.
(Miguel Alexandre Palma Costa)
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