A democracia é uma ideia antiga (Platão fala-nos dela na República e nas Leis já como forma alternativa ao despotismo, à tirania, oligarquia ou aos regimes militares), mas um conceito novo. Foi precisamente o século XX que a consagrou e proclamou como o principal conceito de governo, um pouco por todo o lado. Todavia, para quase todos nós a democracia tornou-se uma formalidade impessoal, uma questão de máquinas de votos e de escrutínios secretos: o momento da eleição hoje já não é apenas ocasião de comemoração mas também de escolha. Os cidadãos sentem “ainda” que os interesses da sociedade se sobrepõem aos interesses do Estado, ou será que não?
Falemos um pouco das origens da democracia: a cidade de Atenas do século V a.C. era famosa pela discussão política. Hoje, a concentração política tem muito mais em comum com um jogo de futebol do que com o debate político, na verdadeira acepção da palavra. Não existe debate (diálogo, discussão, oposição de ideias, contraditório,...) apenas e só apoio e a única voz individual que se faz ouvir e que é a do dirigente, do líder, do secretário-geral,…
Nas palavras de Benjamin Barber[1], «hoje, a discussão política é um discurso vertical: os nossos políticos e dirigentes falam por nós e para nós. Ocasionalmente, podemos responder-lhes numa reunião pública ou através de cartas para o "nosso Congressista" ou para a Casa Branca, mas trata-se de um discurso vertical e geralmente num só sentido.
Em contrapartida, os gregos tinham uma discussão muito mais horizontal, de cidadão para cidadão, de grego para grego. A assembleia não servia apenas para os estadistas falarem para os cidadãos, mas, acima de tudo, para os cidadãos falarem entre si.»
Ora esta forma de “debate político” acaba por radicar na natureza do próprio sistema: actualmente o governo sonega informações vitais acerca da sua actuação e da sua política; esconde-as da nação, restringe-as a si próprio…; e a informação acerca do governo constitui a base de qualquer democracia - sem ela o governo não pode ser avaliado.
Para o cidadão comum o desconhecimento das propostas governativas é quase total e, ao contrário dos atenienses, delegamos a responsabilidade política nos deputados, ou seja, o nosso controlo sobre o governo é ainda mais remoto (na veracidade, praticamente inexistente). Aliás, o nosso sistema parece funcionar tão bem que cada vez à menos espaço para o cidadão comum participar: as pessoas não sabem a quem devem dirigir-se, quem é responsável e quem não é, quem o representa, etc.
Na sua famosa oração fúnebre, Péricles afirmava o seguinte: «não dizemos que um homem não tem interesse pela política, é alguém que só faz pela sua vida. O que dizemos é que não tem nada a fazer aqui.»[2]
Ao contrário da contemporaneidade, os gregos viviam todos os dias em democracia, quase nunca deixavam de ser cidadãos. Serviam regularmente como jurados, eram eleitos para cargos públicos, e metade dos magistrados eram cidadãos comuns; prestavam serviço militar, lutavam na guerra e a assembleia de cidadãos reunia quase de dez em dez dias. Gastavam, literalmente, metade das suas vidas a agir como cidadãos, e a cidadania era, sem dúvida, a sua principal ocupação. Por outras palavras, os atenienses do século V a.C. não estavam interessados nos direitos do homem, mas sim nos direitos dos atenienses. A sua democracia não o era no sentido moderno: a cidadania era muito limitada, excluindo as mulheres, os estrangeiros e os escravos.
Atenas foi grande porque teve a coragem de confiar na capacidade dos cidadãos para decidir o que seria melhor para a comunidade - e sempre que esquecemos este princípio, é a democracia que paga.
É verdade que temos de confiar nas pessoas (palavra-chave em democracia), que devemos proporcionar-lhes “experiência” e ultrapassar essa ignorância permitindo-lhes governar. É também verdade que a responsabilidade de governar é gigantesca e a política e cidadania não são capacidades ou “artes inatas”. Os homens podem nascer livres, mas não nascem cidadãos. Se a cidadania é algo que se aprende e para isso é necessário ter poder e autoridade para governar e até para cometer erros, então também teremos que aceitar que os nossos políticos cometam erros… inúmeros erros, mas mentir… isso é outra coisa! O acto deliberativo de mentir deve ser punido … e a democracia só tem a perder quando vive - ou sobrevive - de mentiras.
A democracia de massas nunca inspirou grande confiança aos pensadores gregos da antiguidade; não acreditavam mesmo que pudesse funcionar…
Ora, será que em Portugal já atingimos este ponto/situação de ruptura com o ideal de democracia e cultura de debate, liberdade e tolerância no discurso da lei, dos assuntos públicos e do governo?
Ultimamente, o nosso governo muito tem contribuído para este avançado estado de desilusão para com o ideal democrático. E aqui não são alheias as últimas medidas da administração "Sócrates" (pregador de uma moral/ética que viola os seus próprios princípios), que para fazer frente ao poder (especulação) financeiro/económico dos mercados internacionais, e depois de apresentar um PEC I, II e agora um IIIº camuflado pelo orçamento de estado para 2011, com um determinismo que faz lembrar o Sr. do antigo regime, esconde do povo a real situação do país e mente quando já por duas vezes anuncia medidas que resolverão a crise mas esta parece e permanece irresolúvel e cada vez mais afecta a vida particular dos cidadãos.
Nas suas palavras, é preciso cumprir com as obrigações que o estado português assumiu… e manter Portugal na senda do progresso e do desenvolvimento (TGV e novo aeroporto de Lisboa), … mas aos cidadãos deste estado (aparentemente falido) nunca foi verdadeiramente revelada a conjuntura financeira do país e o nível de endividamento contraído nas instituições financeiras estrangeiras.
Então, é preciso tomar medidas… e medidas bastante severas para todos os portugueses… mas estas mesmas medidas anunciadas na primeira pessoa por sua Ex.ª o Sr. Primeiro-Ministro, estarão elas a respeitar e a fazer cumprir alguns dos direitos que a nossa Constituição nos reserva, como por exemplo?:
Artigo 19.º
(Suspensão do exercício de direitos)
1. Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição. (Será o caso?)
Artigo 59.º
(Direitos dos trabalhadores)
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna; (Será que depois um decréscimo de 5% nos vencimentos ilíquidos acima 1500 euros, este direitos não discriminará o sector público em relação aos vencimentos auferidos no sector privado? Veja-se por exemplo, o caso do professores do sector público e os do sector privado.)
b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar…
(Que realização pessoal e profissional terão agora os funcionários da administração pública após estas medidas? E onde estão os famosos constitucionalistas que nada dizem/fazem perante uma violação tão clara de alguns dos preceitos da nossa lei máxima? É possível um primeiro-ministro trair a confiança para com os cidadãos do seu país e ainda assim permanecer, ao abrigo da lei, à frente do poder?
Benjamin Barber recorda também que «não se deve esperar que quem detém o poder, quem o manipula e ganha com ele, abdique dele, pois não o fará. Nunca ninguém nessas circunstâncias abdicou voluntariamente». O que tem de acontecer é que os que detêm, teoricamente, os direitos de cidadania, aqueles a quem a Constituição classifica como ‘cidadãos’, mas que não exercem os seus "direitos de cidadania", tenham de transformar a retórica em atitudes práticas. Isto é, têm de exigir, têm de pressionar, têm de obrigar que os direitos que possuem em teoria lhes sejam garantidos na realidade. E isso só acontecerá quando as pessoas abandonarem a sua complacência e exigirem que lhes sejam facultados, na prática, os direitos e poderes que a Constituição teoricamente e eruditamente lhes reconhece/oferece. Será que o século XX será o século da cidadania em substituição ao apelidado "século do povo"?)
Miguel Alexandre Palma Costa
[1] Professor de Teoria Política na Universidade de Maryland, College Park: a sua obra principal foi publicada em 1996 e intitula-se Jihad vs. McWorld.
[2] «O regime político que nós seguimos não inveja as leis dos nossos vizinhos (…). O seu nome é democracia, pelo facto de a direcção do Estado não se limitar a poucos, mas a se estender à maioria. (…) Os mesmos indivíduos cuidam das questões familiares e das políticas, e a outros, aos que se dedicam aos seus ofícios, não falta um conhecimento suficiente dos assuntos públicos. Somos os únicos que entendemos que quem não compartilha destas preocupações não é indiferente, mas sim inútil, e por nós julgamos as questões públicas, ou pelo menos, estudamo-las convenientemente, não por pensarmos que as palavras prejudicam a acção, mas sim que é mais nocivo não ensinar primeiro pela discussão, antes de chegar o tempo de actuar. Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de ousar o máximo mas reflectir profundamente sobre a empresa a que nos votamos. Enquanto que aos outros a ignorância traz a coragem, e o cálculo acarreta a hesitação.» in Pereira, M. H R., Hélade, Edições Asa, Coimbra, 1963, pp. 288-289.
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