«Certifiquemo-nos da nossa situação humana. Estamos sempre em determinadas situações. Estas modificam-se, surgem novas oportunidades; se as desperdiçarmos, não tornam a oferecer-se. Por mim, posso agir para alterar a situação. Há, porém, situações que se mantêm essencialmente idênticas, mesmo quando a sua aparência momentânea se modifica e se oculta a sua força avassaladora: tenho de morrer, tenho de sofrer, tenho de lutar, estou sujeito ao acaso e incorro inelutavelmente em culpa. A estas situações fundamentais da nossa existência damos o nome de «situações-limite». Quer isto dizer que são situações que não podemos transpor nem alterar. A tomada de consciência destas situações-limite é, após o espanto e a dúvida, a origem mais profunda da filosofia. Na existência comum esquivamo-nos a elas muitas vezes, fechando os olhos e vivendo como se não existissem.
Esquecemos que temos de morrer, esquecemos a nossa culpabilidade e a nossa sujeição ao acaso. Defrontamo-nos, assim, apenas com situações concretas, que resolvemos em nosso benefício e às quais reagimos por planos e atos instigados pelos interesses da nossa existência no mundo. Às situações-limite, porém, a nossa reação é diferente: ou as ignoramos ou, se realmente as apreendemos, desesperamos e readquirimo-nos a nós próprios por uma metamorfose da nossa consciência do ser.
Podemos definir a nossa situação humana de outro modo: como ausência de garantia de tudo o que está no mundo.
A ausência de problematicidade em nós aceita o mundo como absoluto. Numa situação feliz, rejubilamos com a nossa força, acalentamos uma confiança impensada e nada conhecemos para além do nosso presente. Atingidos pela dor, pela fraqueza, pela impotência, desesperamo-nos. E se vencermos essas situações e continuarmos vivos deixamo-nos novamente embalar, alheados e esquecidos.
O Homem, porém, aprendeu muito com essas experiências. A ameaça mostrou- lhe que era urgente uma garantia. O domínio da natureza e a comunidade humana são as garantias da existência que encontrou.
O Homem apodera-se da natureza para se assegurar do seu serviço; a natureza deverá ser domesticada pelo conhecimento e pela técnica. Todavia, o próprio domínio da natureza é aleatório. Constantemente ameaçado, por vezes malogra-se totalmente. Não se pode abolir o trabalho penoso, o envelhecimento, a doença e a morte. O processo que assegura o domínio da natureza é um caso particular no enquadramento da total insegurança. (…)
À total insegurança do mundo contrapõe-se, porém, este outro facto: no mundo, há o que é digno de crença, o que inspira confiança, o solo firme que nos suporta – a pátria e a terra natal, os pais e os antepassados, os irmãos e os amigos, a esposa, o marido. Há o fundamento histórico do património tradicional da língua materna, as crenças, as obras dos pensadores, dos poetas e dos artistas.
Mas também este património tradicional não nos oferece refúgio, nem podemos confiar nele em absoluto. Pois, sob a forma em que se nos apresenta, é todo obra do Homem, Deus não se encontra em nenhum lugar do mundo. A tradição é sempre simultaneamente um problema. A todo o tempo, o Homem, em confronto com ela, tem de descobrir espontaneamente o que para ele é certeza, ser e segurança. Contudo, na insegurança geral do mundo, serve-nos de indicação, impede a completa satisfação mundana, aponta-nos algo diferente. As situações-limite – morte, acaso, culpa e insegurança – mostram o fracasso.
Que farei eu perante este fracasso absoluto, a cuja intuição me não posso furtar se honestamente o apreendo?
Não nos satisfaz o conselho do estóico, que nos recomenda o refúgio na independência do pensamento que é a liberdade própria. Errou o estóico, porque não viu quão profundamente radical é a impotência do Homem. Passou-lhe também despercebida a independência do pensamento que em si é vazio e está atido ao que lhe é dado; esqueceu também a possibilidade da loucura. O estóico deixa-nos desolados na simples liberdade do pensamento, porque este carece de conteúdo. Deixa-nos sem esperança, porque exclui qualquer tentativa espontânea de íntima superação, bem como a plenitude obtida pela dádiva de nós próprios, que o outro nos restitui, em amor e esperançosa expectativa do possível.
Mas o que o estóico pretende é autêntica filosofia: a sua origem nas situações-limite provoca o impulso fundamental para encontrar o acesso ao ser no próprio fracasso. O modo como o Homem sente o fracasso é decisivo: pode não dar por ele e ser, de facto, dominado, por fim, ou apercebê-lo nitidamente, mantendo-o presente como fronteira permanente da sua existência; pode recorrer a soluções e a paliativos fantásticos ou aceitá-lo honestamente, calando-se perante o indecifrável. O modo como se apercebe do fracasso é o fundamento da sua evolução.
Nas situações-limite, revela-se o nada ou torna-se sensível aquilo que autenticamente é, apesar de e para além do ser mundano evanescente. O próprio desespero, pelo facto de ser possível no mundo, aponta para além do mundo.
Por outras palavras: o Homem busca a redenção. A redenção é-lhe oferecida pelas grandes religiões universais. O seu sinal é uma garantia objectiva da verdade e realidade da redenção. Seguir esta via conduz ao acto da conversão do indivíduo. Isto não pode a filosofia oferecer-lhe. Todavia, o filosofar é um triunfo sobre o mundo, o análogo da redenção.»
Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, Guimarães Editores, Lisboa, págs. 21-25
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