(Textos de Apoio ao 10º Ano)
«Não há introdução a um domínio, seja ele qual for, sem uma definição prévia daquilo que se vai falar. Uma introdução à numismática, por exemplo, dedicar-se-á primeiro a definir o que são as medalhas, em quem é que estes objectos se não confundem com as simples moedas, como é que esta ciência se distingue da história económica, da história da arte, etc.
Uma introdução à filosofia, [...] encontra-se colocada perante dificuldades particulares, pois é bem conhecido que o objecto e os métodos da filosofia não têm a clareza unanimemente reconhecida das ciências. Certos filósofos, entre os maiores, como Nietzsche, Wittgenstein ou Heidegger, anunciaram a morte, próxima e definitiva, da filosofia. Estes anúncios parecem um pouco paradoxais, já que se encontra sempre um filósofo que, em seguida, vem re-interpretar este fim da filosofia. Eu penso no grande livro de Heidegger sobre Nietzsche, mas também em Wittgenstein refutando-se a si próprio, quinze anos após o Tratactus. Mas eles têm o mérito de chamar a atenção sobre a particularidade da filosofia, que parece viver de refutações, de debates, de querelas.
Não podendo mostrar o objecto da filosofia, como o numismata pode exibir o objecto dos seus estudos, contentamo-nos com este primeiro critério, bastante formal, é verdade: a filosofia nasce, vive e perdura graças aos debates entre os filósofos. Ela é um perpétuo diferendo, e este traço é tão marcante e parece, a certos olhares, tão escandaloso, que a maior parte dos filósofos são tentados a resolver estes conflitos e anunciar, como Kant, “a próxima conclusão de uma tratado de paz perpétua em filosofia”. Em vão.
Lacoste, Jean, La Philosophie au XX siécle – Introduction à la Penseé Philosofique Contemporaine, Paris, PUF, 1988, p. 10.
«“O que é a filosofia?” [...] conhece-se uma quantidade incalculável de respostas. No entanto, nenhuma delas pode ser considerada categoricamente como certa ou errada. Porquê? Porque cada uma diz respeito a uma outra questão mais particular. Assim a definição aristotélica de filosofia não é, no fundo, mais do que a definição da filosofia de Aristóteles. [...] Ora, a história da filosofia mostra-nos que quase todos estavam convencidos de que a sua doutrina exprimia, de maneira adequada, a essência invariável da filosofia.
Portanto, se nos encontrarmos face a respostas múltiplas, a solução não pode reduzir-se à escolha daquela que pareça a mais válida, é preciso ainda estudar esta multiplicidade específica, o que ao fazê-lo nos levará a compreender que a questão “o que é a filosofia?”, bem como as variadas respostas que ela provoca, nos obrigam a debruçar-nos sobre a realidade, infinitamente variada, que a filosofia procura apreender.»
Oizerman, Theodor, Problemas de História da Filosofia, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, pp. 50-51.
Filosofia ou filosofias?
«A Filosofia-em-si não existe, tal como não existe o Cavalo-em-si; há apenas filósofos como há apenas cavalos árabes, percherons, leoneses ou anglo-normandos. As filosofias são produzidas por filósofos: e a proporção não é tão vã como habitualmente se acredita. Como há trinta e seis mil espécies de filósofos, há outras tantas espécies de filosofias [...].
A Filosofia diz qualquer coisa, não tem uma vocação eterna, nunca é nem nunca foi unívoca, é mesmo o cúmulo da actividade equívoca. A Filosofia em geral é o que resta das diferentes filosofias, quando as esvaziámos de toda a matéria, quando mais nada subsiste que não seja um certo ar de família, como uma atmosfera evasiva de tradições, de conivências e de segredos. É uma entidade do discurso. [...]
A Filosofia acaba sempre por falar da posição dos homens, obedece sempre ao programa que Platão lhe traçou: “O objecto da Filosofia é o homem e o que diz respeito à sua essência de sofrer e de agir”.
Mas como não há uma ordem única da posição humana, uma solução estabelecida para a eternidade do destino dos homens, uma única chave para a sua situação, esta Filosofia permanece totalmente equívoca. A primeira tarefa que se apresenta a uma iniciativa crítica é a definição do equívoco presente da palavra Filosofia.»
Nizan, Paul, Les Chiens de Garde, F. Mespero, 1960, pp. 16-17.