Este espaço comunicativo foi pensado com o propósito de facultar a todos os interessados um conjunto de reflexões e recursos didácticos relativos ao ensino das disciplinas de Filosofia e Psicologia, acrescentado com alguns comentários do autor.

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Quarta-feira, 26 de Novembro de 2008

Ensino elitista

O ensino público português não está a cumprir o seu papel social de dar oportunidades aos estudantes oriundos de famílias culturalmente carenciadas. Isto acontece porque as políticas do Ministério da Educação têm tido o efeito de dificultar cada vez mais a aprendizagem desses estudantes. Vejamos porquê.

     A convicção que tem orientado as políticas educativas dos últimos anos é a seguinte: os estudantes culturalmente carenciados não são realmente ensináveis, nem podem ter qualquer interesse em física, medicina ou geografia, porque são cognitivamente deficientes: só os filhos das famílias culturalmente privilegiadas são ensináveis, porque não são cognitivamente deficientes, e por isso só eles podem ter interesse nas matérias "elitistas".

     Esta convicção não só é uma aberração biológica como põe o mundo de pernas para o ar: o elitismo é a crença de que a física quântica, por exemplo, ou o piano, é só para certos estudantes privilegiados, ao passo que para os outros só pode interessar o surf. Esta atitude é parecida com o racismo, porque, em vez de ver os estudantes individualmente como seres humanos, vê os estudantes apenas como membros de classes sociais, e presume que os estudantes culturalmente carenciados o são, não por serem vítimas da falta de oportunidades, mas por incapacidade cognitiva.

Ao eliminar as disciplinas centrais das áreas académicas que constituem o legado da humanidade, substituindo-as por vacuidades escolares que visam aparentemente a integração social ou a educação para a cidadania, a escola pública faz o oposto: não permite que um estudante culturalmente carenciado possa tornar-se um cidadão pleno, porque não lhe dá as competências cognitivas relevantes, nem lhe ensina os conteúdos sem os quais só poderá ser um consumidor passivo da Coca-Cola, telenovelas e futebol.
Ao tornar os exames cada vez mais fáceis, a escola pública prejudica exclusivamente os estudantes mais carenciados, pois está a dizer-lhes que não precisam de estudar, ao mesmo tempo que aprofunda o fosso entre eles e os mais privilegiados, pois estes estudam em qualquer caso, com exames fáceis ou difíceis.
O Ministério da Educação não consegue persuadir os estudantes mais carenciados do valor intrínseco do conhecimento, do estudo e da escola, porque considera que estes estudantes não têm capacidade cognitiva para valorizar tais coisas. Mas qualquer agência de publicidade conhece as técnicas básicas para criar nas pessoas apetência pelo que elas antes não valorizavam. Proponho por isso que se substitua o Ministério da Educação por uma agência de publicidade.
Se é possível convencer os estudantes mais carenciados a valorizar inanidades como a Coca-Cola, os ténis Nike e os bonés americanos de basebol, tanto mais fácil será ensinar-lhes a valorizar o que realmente tem valor intrínseco: o legado cognitivo da humanidade, codificado em coisas como a matemática, a física ou a história.
 
Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
Público, 15 de Julho de 2008

rotasfilosoficas às 11:55

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Terça-feira, 18 de Novembro de 2008

O pesadelo burocrático e a desobediência à lei

 

“O facto de os cidadãos estarem em geral dispostos a recorrer à desobediência civil justificada é um elemento de estabilidade numa sociedade bem ordenada, ou seja, quase justa”
 
John Rawls, Uma Teoria da Justiça
 
Tenho 48 anos e sou professor do ensino secundário há quase 26. Sou professor titular de Filosofia, não estou sindicalizado, não me recordo de ter faltado ao trabalho, mesmo em dias de greve, e não costumo participar em manifestações – nem sequer participei nas duas últimas grandes manifestações de professores, se bem que tenha pena de não o ter podido fazer. Nunca me passou pela cabeça ter outra actividade profissional, mesmo ganhando mais do que os 1850 euros que, após todos estes anos, recebo no final do mês.
 
Sei que para ensinar bem os meus alunos tenho de continuar a estudar, a ler e a aprender. Como costuma dizer um amigo meu, Desidério Murcho, para se ensinar bem até à letra C é preciso dominar as matérias até pelo menos à letra M: é preciso um grande à vontade e um bom domínio do que se ensina para se antecipar dificuldades dos alunos, para se responder a dúvidas inesperadas, para se encontrar o exemplo certeiro, para indicar as leituras adequadas, etc. Isto exige uma grande preparação e uma actualização permanente do professor, além de um ambiente de trabalho tranquilo e estimulante. Até porque são as deficiências científicas que originam, na maior parte da vezes, as situações pedagogicamente mais desagradáveis.
 
Infelizmente, os escassos estímulos que ainda poderiam existir nesse sentido parecem pertencer ao passado. As escolas transformaram-se, de há dois anos para cá, numa balbúrdia constante e num verdadeiro pesadelo burocrático em que ninguém parece entender-se. E, com muita tristeza minha, vejo os livros de filosofia que todas as semanas encomendo na Amazon ou outras livrarias acumular-se sem quase ter tempo para os folhear. Preparar aulas decentemente é algo que também deixei de fazer, caso contrário nem sequer vida familiar poderia ter. Não fosse o caso de os alunos estudarem por um manual que conheço de cor – porque sou um dos seus autores – e as aulas seriam um completo improviso. Comparar o que se tem passado nas escolas nos últimos dois anos com a barafunda gerada com o atraso da colocação de professores no tempo do ministro David Justino é como comparar um episódio infeliz com a própria infelicidade. E o ministro David Justino caiu por causa disso.
 
Creio poder dizer, sem qualquer exagero nem arrogância, que conheço melhor do que a senhora ministra o que se passa nas escolas, pois há 25 anos que passo a maior parte da minha vida nelas. Ora, nunca, mas mesmo nunca, houve tanta confusão e um ambiente tão pouco adequado ao ensino e à aprendizagem como o que se verifica actualmente.
 
Perguntar-se-á: o que ando então a fazer o tempo todo para deixar de preparar as minhas aulas como deve ser? A resposta poderia ser dada até pelo meu filho, apesar de ainda ser criança: além das aulas, passo os dias em reuniões intermináveis para entender o sentido do terrorismo legislativo com que se tolhem e intimidam os professores. Na verdade são muito mais as horas que tenho gasto a reunir por causa da avaliação do que com aulas. E o pior ainda nem sequer chegou. Como avaliador de oito colegas, terei de inventar mais 36 horas para assistir a aulas suas, além das reuniões preparatórias que tenho de fazer com cada um deles e dos quilos de papelada para preencher. De resto, na minha escola os professores irão passar o ano a assistir às aulas uns dos outros, pois somos 165 professores, o que dá cerca de 500 aulas assistidas por ano. Além disso, terei de preparar tudo para o meu avaliador – um colega de Economia que não tem culpa de nada e que fará certamente o seu melhor – poder assistir às minhas aulas de Filosofia.
 
Que o novo modelo de avaliação é inútil e ineficaz já o provou definitivamente, sem o querer, a senhora ministra. Diz ela repetidamente que esta avaliação é absolutamente necessária para a qualidade do ensino e para a melhoria dos resultados. Porém, anunciou com grande pompa ao país que os resultados melhoraram no último ano, o que acabou por ser reforçado com a divulgação dos resultados dos exames nacionais. Só que esta apregoada melhoria da qualidade e dos resultados verificou-se ainda antes de o modelo de avaliação produzir qualquer efeito. Logo, fica provado que a avaliação não é uma condição necessária para a melhoria da qualidade e dos resultados. O que leva então a ministra a dizer que a avaliação é absolutamente necessária?
 
Os responsáveis pelo actual ministério da educação parecem, talvez inconscientemente, querer pôr em prática o cenário tenebroso descrito por George Orwell em "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro", em que a catadupa de despachos, decretos regulamentares, documentos orientadores, ordens de serviço, instruções superiores, recomendações, etc., frequentemente incoerentes – vale a pena dizer que acumulo em casa mais de mil fotocópias sobre avaliação, que me foram entregues na escola –, são a tradução quase literal do "Big Brother is watching you" da 5 de Outubro. A obsessão do ministério por controlar tudo e todos até ao mais pequeno detalhe está bem patente no modelo de fichas de avaliação que impõe às escolas e aos professores (parece que a ideia é a de que, entre tanta coisa pedagogicamente inane, sempre há-de haver uns quantos aspectos em que o avaliado vai falhar, de modo a não atrapalhar as escassas cotas disponíveis para progressão na carreira). E o mais irónico é que, quando se encontram incoerências e impasses nas instruções oriundas do ministério, a ministra deixa o problema para as próprias escolas com o argumento de que lhes quer dar autonomia na construção dos seus instrumentos de avaliação. Não é, pois, surpreendente que os professores se sintam desorientados, cansados, chantageados e até insultados. Isso acaba naturalmente por se reflectir na sua prática lectiva e os alunos notam bem a diferença quando o professor dá as aulas cansado.
 
Mas o pior de tudo é que o modelo de avaliação fabricado na 5 de Outubro não vai permitir distinguir os bons dos maus professores, ao contrário do que a senhora ministra alega. Talvez seja até pior do que a completa ausência de avaliação, premiando arbitrariamente alguns dos maus e castigando cegamente muitos dos bons. Se assim não fosse, que razões teriam os bons professores que desfilaram na manifestação de sábado para lá estarem? Ou será que os mais de cem mil são todos maus ou simplesmente estúpidos? Os professores sentem-se compreensivelmente ameaçados porque o modelo, além de burocrático, como convém ao Big Brother, obedece a uma espécie de pensamento único pedagógico: há um dogma pedagógico subjacente a que todos têm de aderir, tal como se emanasse do Ministério da Verdade orwelliano. Esse dogma é o da pedagogia do eduquês: são os resultados a qualquer preço, é a inovação a martelo, são as “estratégias de ensino-aprendizagem” como se o professor fosse o aprendiz (também o é, mas noutro sentido). Enfim, é a avaliação do portfólio e dossiê do professor para ver se ele tem o seu caderno diário em ordem, infantilizando uma actividade em que, pelo contrário, se exige autonomia e auto-confiança.
 
De resto, não é preciso muita atenção para ser confrontado com essa novilíngua do eduquês que, de há muitos anos para cá, tem caracterizado o Ministério da Verdade. Só que agora passou a ter uma força imparável, pois vai ser a destreza no uso dessa novilíngua a determinar se o professor é dos bons ou dos maus. Esta é, sem dúvida, a avaliação do pior eduquês em todo o seu esplendor. É um enorme passo para a asfixia intelectual dos professores e para a sua menoridade profissional. E é a negação da desejável diversidade pedagógica, transformando os professores em meros instrumentos de uma cadeia de produção em série e impedindo os alunos de se enriquecer no contacto com diferentes estilos e metodologias.
 
Mas o que realmente importa no desempenho do professor é, respeitando os alunos e os seus direitos, ensinar-lhes e ajudá-los a aprender o que é suposto aprenderem, recorrendo às concepções pedagógicas que muito bem se entender. É relativamente fácil apurar se o professor soube realmente ensinar e se os alunos conseguiram realmente aprender, independentemente da metodologia usada e das concepções pedagógicas em jogo, desde que os seus alunos realizem no final do percurso exames bem concebidos. E se se ponderarem os resultados dos exames comparando-os com a média de cada disciplina nas respectivas escolas, estamos muito próximos de um sistema de avaliação muito mais justo, simples, eficaz e dignificante para todos. Claro que para isso era preciso haver mais exames, além de melhores programas e de mais formação de professores, coisas que não parecem interessar minimamente a senhora ministra.
 
Assim, tudo indica que quando a senhora ministra afirma totalitariamente que ou se aplica o seu modelo ou não há outro, só pode estar a fazer chantagem, o termo que utiliza para descrever o comportamento dos sindicatos junto dos professores, como se os professores fossem idiotas. A verdade é que neste momento já não são os sindicatos a comandar os professores, mas os professores a empurrar os sindicatos, de tal modo que os próprios sindicatos já não estão em condições de cumprir o acordo assinado há meses com o  ministério. De nada serve, portanto, ao primeiro-ministro apontar o dedo ao incumprimento dos sindicatos. Se estes tivessem representado devidamente os professores, nunca teriam de voltar agora atrás com a palavra. Por isso, não vale a pena recorrer a fantasias e negar uma realidade muito crua: a insistência do governo no actual modelo está a degradar como nunca o sistema educativo nacional e a pôr em causa o normal funcionamento das escolas. E esta ministra ficará seguramente na história como a maior desgraça que se abateu nos últimos tempos sobre a educação em Portugal. Isso só ainda não é mais notório porque os efeitos das políticas educativas só se tornam evidentes passados vários anos. Por isso é arrepiante ver a senhora ministra insistir – contra tudo e contra todos os que, em Portugal, já alguma vez revelaram interesse pelas questões da educação – numa teimosia própria de mentes obstinadas e dogmáticas. E é também por isso um imperativo de justiça desobedecer a esta lei arbitrária e injusta, sobre uma questão de tão grande importância. Chama-se a isto desobediência civil e foi isso que fizeram em diferentes circunstâncias Gandi, Luther King, Bertrand Russell e muitas das referências cívicas e culturais do nosso mundo. É ilegítimo não cumprir a lei, diz a senhora ministra sem se aperceber que está a ser redundante. Pois é, é ilegítimo não obedecer à senhora ministra, pois foi ela que fez a lei. Mas terá mesmo de ser.
 

Professor titular de Filosofia da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de Portimão


rotasfilosoficas às 12:17

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Terça-feira, 11 de Novembro de 2008

Ao aprendiz de filósofo

 

“[…] Ao aprendiz de filósofo (ao jovem aprendiz, pretendo eu dizer, e na minha qualidade de aprendiz mais velho), rogo que se não apresse a adoptar soluções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de os compreender a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do que se chame «senso comum (a filosofia é, em não pequena parte, a luta do bom senso contra o «senso comum»).
[…] Ora, se o fundamental da filosofia é de facto a crítica, e se, pois, a filosofia deve ser estudada não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, senão que pelo valor que em si mesma assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos lecciona a ginástica, procedendo ele próprio como um bom ginasta e obrigando-nos a nós próprios a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo da faina de elucidação dos problemas […] Repito: seja a filosofia para o aprendiz de filósofo não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma actividade de elucidação dos problemas. É esta actividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. Como tive ensejo de notar algures, pode ser muito útil para a vida prática o simples conhecimento do enunciado de uns tantos teoremas de matemática; porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.
Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito, de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos aí eternamente passivos, de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, conclua que ele próprio é que a não percebe, e que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe portanto uma atenção maior [...] e o melhor processo nessa primeira fase, é talvez o de refazermos por iniciativa nossa, com exemplos familiares da nossa experiência, a doutrina exposta pelo autor que estudamos, até que a tenhamos como coisa nossa, porque feita de matéria verdadeiramente nossa, e reconstruída pelo nosso espírito.”
 

Prefácio de António Sérgio a Os problemas da Filosofia de Bertrand Russell, Coimbra.1959, pp, 7-10.


rotasfilosoficas às 18:37

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