Este espaço comunicativo foi pensado com o propósito de facultar a todos os interessados um conjunto de reflexões e recursos didácticos relativos ao ensino das disciplinas de Filosofia e Psicologia, acrescentado com alguns comentários do autor.

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Quinta-feira, 29 de Maio de 2014

O sexo: "dois num só"

 

 

Num texto clássico, Platão fala-nos de uma época em que cada ser humano integrava os dois sexos: «Os deuses tinham criado cada ser como homem e mulher, com quatro mãos, quatro pernas e duas faces, cada uma olhando em direcções opostas a partir de um pescoço comum. Mas estas estranhas criaturas tornaram-se orgulhosas e, como castigo, os deuses dividiram-nas ao meio. Hoje, cada metade caminha errante sobre duas pernas, numa busca incessante da outra metade de que foi separada. As duas metades continuam a busca em perpétuo sofrimento até se unirem de novo.» (Platão, Symposium)

 

 

Para se realizar o ser humano tem de ser desejável, para ser desejado tem de ser belo, e para ser belo o ser humano tem de fazer por isso. Ora, os modernos ginásios são locais tipicamente gregos: gymnasium é uma palavra grega para designar um conceito claramente grego; significa o “lugar onde se faz exercício nu”. A razão de ser da nudez prendia-se com o tornar óbvia qualquer imperfeição física e o espectro da vergonha servia de incentivo para o redobrar do esforço.

 

 

O culto da boa forma coincide com a atitude dos gregos quanto à beleza física e deriva directamente dessa atitude. A dor é suportada em nome do mesmo ideal. Os gregos construíram uma complicada equação relacionando as belezas física e moral. Consideravam que quem era belo exteriormente era-o também interiormente. Actualmente, a nossa obsessão pela manutenção da perfeição física, o nosso medo do envelhecimento e da gordura confirmam que a influência persiste. Dedespimos-nos para tentar envergar as roupagens do ideal grego de corpo, é como se ainda nos sentíssemos embaraçados pelo olhar dos antigos gregos a pousar sobre nós.

 

A crítica feminista Rosalind Coward refere que ainda «hoje julgamos viver numa sociedade livre, sem pressões, pelo que as nossas ideias de homem e mulher deverão estar corretas, pois ainda nos obrigam a pensar de determinada maneira. Mas, claro que isto é uma profunda asneira! Possuímos tantos mitos acerca do homem e da mulher como sempre houve!». A este respeito o professor Oliver Taplin[1] acrescenta que «a Grécia antiga pode dar-nos visões alternativas, quase mitos alternativos, em áreas em que a ética cristã dominante e a Bíblia se revelam omissas e impedem a discussão. A sexualidade é uma dessas áreas mais explícitas. Pensemos, por exemplo, na homossexualidade: em Sodoma e Gomorra. Pouco é dito. As pessoas têm dificuldades em falar desse assunto. Mas vamos à Grécia antiga: Sappho de Lesbos[2] deu origem ao termo lesbianismo. E os homossexuais masculinos descobrem não apenas que a homossexualidade já aí existia, mas que era considerada uma atitude nobre e louvável. Voltam-se para Platão e descobrem que, com ele, a homossexualidade masculina ganhou uma base e uma respeitabilidade filosóficas.»

 

Em 1988, na cidade de Londres, um numeroso grupo de defensores dos direitos dos homossexuais, realizou uma manifestação contra uma lei que pretendia proibir toda a literatura que fizesse a apologia da homossexualidade. Entre os alvos da lei estavam alguns opúsculos editados pelas escolas locais. Mas, na Câmara dos Lordes foram levantadas algumas questões: o Symposium, o célebre diálogo de Platão estaria incluído entre as obras a proibir?... Todavia, Platão poderia continuar a ser o ídolo dos homossexuais da atualidade; continuava a possuir tanto poder e autoridade cultural que quem o quisesse censurar corria o risco de ser acusado de “tacanhez mental”!.

 

A este propósito George Steiner[3] diz-nos que: «se pudéssemos responder àqueles que na última proposta de lei nos disseram: “Não podem advogar abertamente o homo-erotismo”. Nós diriamos-lhes: “Está bem! Vamos promover leituras públicas do Symposium de Platão, e processem-nos! Sempre queremos ver se se atrevem a processar-nos!?” Esta obra é uma das molas reais de todo o pensamento e conhecimento ocidentais. Se nos alerta para a riqueza e complexidade cultural de uma ordem homo-erótica, nesse caso a sua importância é ainda maior!».

 

Lembremos Platão: «Quando o ser amado o faz sentir bem-vindo e começou a apreciar a sua conversa e companhia, quando a intimidade se estabeleceu entre eles e o ser amado começou a habituar-se a estar perto do seu amigo e a tocar-lhe no gymnasium e noutros locais, criou-se uma corrente a que Zeus, apaixonado por Gamínedes, chamou corrente do desejo...». (Platão, Symposium)

- Omita a referência ao vício inconfessável dos gregos!

 

 

Numa sociedade em que a homossexualidade representa um amor inconfessável, a eloquência de Platão ganhou ainda mais importância para os homossexuais. Platão podia expor claramente aquilo que os outros nem se atreviam a pensar.

 

«Tal como o ser amado, sentia o desejo de o ver, de o tocar, de o beijar.» (Platão, Symposium)

 

Em Maurice[4], a sua obra autobiográfica, Edward Morgan Forster recorda a reacção de Clive Durham - o seu jovem herói - ao ouvir ler pela primeira vez a obra de Platão. Acabava de ver o seu mal descrito, calmamente como uma paixão que, como qualquer outra, se podia canalizar para o bem ou para o mal. De início mal pôde acreditar na sua sorte. Por fim, percebeu que aquele pagão moderado compreendia a sua maneira de ser e lhe proporcionava um novo sentido de vida. Um sentido de vida para todos quantos se levantam contra a intolerância e a incompreensão.

 

Entre os participantes na manifestação acima referida pode existir um outro tipo de incompreensão em relação à vida na Grécia. Mas, de uma maneira geral, mesmo quando incompreendida, a Grécia não deixou de exercer a sua influência. O desejo homossexual na Grécia era visto numa perspectiva muito diferente da atual. Segundo Kenneth Dover[5], «os gregos viam a homossexualidade de forma assimétrica. Postulavam que a beleza atrai independentemente do sexo. Por outras palavras, era natural que um adulto sentisse desejo por um jovem belo, tal como o sentia por uma jovem igualmente bela. O homem é autorizado, até mesmo encorajado, a apaixonar-se por jovens ou adolescentes imberbes. Da mesma forma, são encorajados a apaixonarem-se por adolescentes. O que é desencorajado, condenado, ridicularizado e considerado de certa forma chocante, é a relação homossexual entre pessoas da mesma idade, particularmente entre dois homens adultos, ou seja, é uma relação muito unidireccional. Ao mais velho é permitido desejar o mais novo, mas do mais novo não se espera que deseje o mais velho.»

 

A sociedade grega não deixava de ser repressiva e, certos comportamentos homossexuais, eram severamente reprimidos. Por exemplo, o lesbianismo[6] era um assunto tabu em Atenas. Contudo, o comportamento homossexual mais severamente reprimido era a sodomia. A condenação da sodomia devia-se ao facto do homem agir como mulher. Esta condenação revela o medo atávico da feminilidade ou de comportamentos que podem ser considerados femininos. O modo como os atenienses tratavam as suas mulheres denuncia este medo. George Steiner confessa mesmo que «o maior fosso que nos separa dos antigos gregos é, de facto, o estatuto da mulher na vida moderna. Na opinião de Aristóteles, as mulheres não tinham alma. Claro que, para nós, trata-se de uma opinião extrema. No entanto, temos de a compreender para podermos compreender aspectos fulcrais da sociedade e das relações pessoais na Grécia antiga.

 

Encontramos duas ou três poetisas lendárias na Grécia antiga, como Sappho de Lesbos. Há algumas, poucas, vozes femininas, arcaicas. No apogeu da sociedade grega a mulher desempenhava um papel secundário, marginalizado, ostracizado em termos de poder político, público, de criação ou da simples presença nos actos sociais importantes. Não há dúvidas, se a nossa civilização acentuar a sua feminilidade, é inevitável que, pela primeira vez, parte substancial da Grécia antiga escape à nossa compreensão».

E o que poderia perder-se ao adoptar-se um comportamento mais feminino? Talvez aquilo que a cultura grega mais valorizava.

 

 

Ao tomar a cicuta Sócrates tornou-se o segundo mártir mais famoso da história. O seu julgamento é o único que pode, de certa forma, ser comparado ao julgamento de Jesus Cristo. Mas quase despercebido no meio do famoso relato da morte de Sócrates existe um detalhe cujo significado merece ser compreendido. A mulher de Sócrates – Xantipa – é mandada embora quando a morte se aproxima. Ora, isto deve-se a ela ser mulher e, como tal, não ser considerada digna de permanecer junto do esposo enquanto este explica o “sentido da vida”.

 

Na antiguidade, nenhuma ateniense poderia ter-se sentado ou admirado a deslumbrante vista que se assoma da Acrópole. O templo do Pártenon ou a "casa da virgem", albergava uma enorme estátua furtiva da deusa Athena[7], deusa de atributos guerreiros e da sabedoria, mas também a padroeira da cidade. No entanto, esta área era estritamente reservada a homens, excepto em algumas cerimónias religiosas muito especiais, as mulheres não podiam penetrar na Acrópole: na realidade nem podiam sair de casa sem companhia. Mas a própria reclusão das mulheres causava preocupação aos homens. Que fariam as mulheres durante todo o dia? De que falariam? E que preparariam enquanto os homens estavam fora de casa? Possivelmente algo de subversivo, certamente algo de sexual!. Todavia, havia um caso em que as mulheres eram exibidas em público: eram representadas na cerâmica grega, famosa pela sua obscenidade explícita. Mesmo hoje alguma cerâmica grega pode ser considerada muito "picante". As cenas representadas na decoração, bem como a comédia de Atenas, exuberantemente obscena, sugerem uma atitude muito aberta e liberal para com a sexualidade, extremamente atractiva para outras culturas. A própria religião grega é profundamente carnal e nesse aspecto é completamente oposta ao cristianismo. Os seus mitos são lendas de sedução intermináveis.

 

 

O professor Oliver Taplin relata que «na cerâmica e na poesia da Grécia antiga descobre-se uma sexualidade exuberante e uma aparente desinibição geral, proporcionando aos pintores e aos primeiros cineastas uma certa respeitabilidade na apresentação das cenas de nudez e de relações sexuais. Mas, uma análise mais profunda revela-nos que a realidade não era assim tão risonha. Muitos destes mitos têm um lado oculto, e a aparente utopia da sexualidade tinge-se de negro: revelam uma profunda ansiedade em relação à sexualidade, particularmente do ponto de vista do homem grego.»

 

Um dos mitos gregos que serviu de inspiração a uma das primeiras obras cinematográficas foi o mito de Acteão[8]. Um jovem, robusto caçador, que sem o saber, envolve-se com Ártemis[9], a deusa da caça. Acteão é um jovem que, como todos os jovens, caça, bebe e ama. Ártemis, a caçadora, conduz um grupo da ninfas através dos bosques, dançando nas clareiras. Todas as ninfas vestem simples túnicas provocantes. Uma manhã, ao levantar-se da sua tenda, Acteão ouve o som distante de risos. Decide investigar a sua proveniência. O momento fulcral do mito constitui uma verdadeira antecipação dos modernos concursos de Miss “T-shirt molhada”, mas o divertimento tem um fim. Ártemis descobre o voyeur escondido no bosque. Da dança passa ao feitiço, e Acteão é transformado em veado e, com uma ironia tipicamente grega, acaba por ser despedaçado pelos seus próprios cães.

A exultação final de Ártemis e das suas ninfas insinua um medo atávico: o mito não pode ser resumido a um castigo por expiar mulheres em trajes menores. O seu clímax é demasiadamente sinistro e inquietante.

 

 

Por outro lado, o mito do julgamento de Páris[10] é uma espécie de resposta ao mito de Acteão. As três deusas mais poderosas do Monte Olimpo tiveram uma disputa acerca da qual seria a mais bela, e decidiram resolvê-la através de uma competição. Escolheram como juiz, Páris, um jovem príncipe que levava uma vida de ócio, enquanto esperava pela altura de suceder a seu pai no trono do reino de Tróia. Competia-lhe escolher a vencedora e entregar-lhe o prémio: uma maçã de ouro. As deusas, invejosas, subornaram-no. Hera, rainha do Olimpo, prometeu-lhe poder. Atena prometeu-lhe sabedoria. Afrodite prometeu-lhe relações sexuais com Helena, a mulher mais bela do mundo. Ora, o resultado final nunca esteve em dúvida. Páris escolheu obviamente Afrodite. O veredito desencadeou uma enorme tensão e não apenas por parte das derrotadas. 

Para reclamar o seu prémio, Páris raptou Helena. Menelau (rei da Lacedemónia - Esparta - e irmão mais novo de Agamémnon), o marido abandonado de Helena, veio em seu resgate, à frente de um exército para o qual contribuíram todas as cidades gregas. O apetite sexual de Páris desencadeou a famosa guerra de Tróia, de consequências terríveis. O velho pai de Páris – Príamo – foi decapitado num altar do seu palácio. A sua velha mãe foi vendida como escrava. A sua própria união com Helena foi amaldiçoada e dela não resultaram filhos. Eis outro mito que esconde alguns medos!

 

Os mitos libertaram os artistas cristãos das limitações dos seus temas religiosos. Contudo, possuem a sua dinâmica própria. Certas cenas são-nos tão familiares que quase perderam o impacto. Por exemplo, Leda e o cisne, com o drama bizarro de um estudo zoomórfico[11]. E talvez nunca tenhamos prestado atenção ao facto de a espuma de onde nasceu Afrodite, apenas borbulhou quando Cronos atirou ao mar os testículos amputados a seu pai.

Regra geral, a reprodução de cenas da mitologia grega fornece-nos detalhes insuspeitos. A aparente transparência do julgamento de Páris esconde latente um voyarismo sinistro: é o drama de uma mulher que se despe para ser avaliada por um homem que permanece vestido. Daqui emerge toda uma tradição de nudez feminina. A mulher despe-se para o observador masculino imaginário, o qual possui poder para lhe conferir ou recusar a maçã, isto é, o prémio. Este tipo de relação é algo que inconscientemente herdámos dos modelos gregos que aprendemos e cuja dinâmica perpetuámos. As imagens tornam-se cada vez mais persuasivas e determinantes: o homem como observador, a mulher como observada. Ela com o desejo de agradar, ele com o poder de avaliar. A separação apenas serve para realçar o medo. De todas as expressões gregas que veiculam esta ideia, nenhuma é mais eloquente do que a tragédia.

 

George Steiner afirma que «a tragédia grega confronta-se com uma espécie de terror perante o mistério da mulher. Um terror masculino atávico. Trata-se de uma combinação curiosa. Os homens tão confiantes em que só eles podiam governar a cidade, escrever tragédias, construir templos, etc., viam nas mulheres algo de sombrio, arcaico, pré-racional, que simultaneamente os fascinava e repelia. É este o fascínio e repulsa que alimenta a tragédia grega. E que personagens femininas temos nós nessas tragédias? Se prestarmos atenção, a maior parte delas é oriunda de um submundo sombrio, de meios-demónios. Por exemplo, Medeia, que mata o seu próprio filho; que assassina o seu irmão; que coloca pessoas em caldeirões prometendo restituir-lhes de novo a juventude, mas, que, claro, as mata. Contudo, Medeia é simultaneamente a maga. O seu carro puxado por um dragão leva-a até às estrelas, longe de toda a retribuição e justiça humanas. Porquê? Porque ela sabe certas coisas que o homem já esqueceu, ou nunca soube! Ela está em contacto permanente com o mundo das trevas e com a natureza – e com os bárbaros! Com aquilo que fascina os gregos, mas a que simultaneamente se sentem superiores. Porém, é uma superioridade sem à-vontade.

Por outro lado, temos algumas mulheres muito superiores a qualquer homem, na sua pureza absoluta e aterradora. Que nos diz Antígona? Que tudo está bem quando se procede bem, e que a recompensa pode vir com a morte. Basta pensar: esta noite vou estar no Elysium, tal como Sócrates antes de beber a cicuta. “Não sei nada!”. Diz-nos ela: “provavelmente mergulharei na escuridão mais profunda, e até talvez esteja errada!”. (Este é, certamente, um dos momentos mais belos da literatura universal.) “Talvez esteja errada, mas tenho de o fazer. A minha consciência ordena-o. Algo me diz: se deixares o teu irmão insepulto, para ser devorado pelos cães, não mereces ser humana!”. E há outras personagens igualmente e transcendentalmente puras. Mais uma vez, é como se estivessem do outro lado da natureza humana. O espírito ocidental demorará ainda muito tempo para começar a olhar para a mulher como um ser normal. E essa não é a visão grega.»

 

Finalizemos com Platão: «Os deuses tinham criado cada ser como homem e mulher, com quatro mãos, quatro pernas e duas faces, cada uma olhando em direcções opostas a partir de um pescoço comum. Mas estas estranhas criaturas tornaram-se orgulhosas e, como castigo, os deuses dividiram-nas ao meio. Hoje, cada metade caminha errante sobre duas pernas, numa busca incessante da outra metade de que foi separada. As duas metades continuam a busca em perpétuo sofrimento até se unirem de novo.» (Platão, Symposium)

 

Miguel Alexandre Palma Costa



[1] Professor no Magdalen College, em Oxford, desde 1973. Algumas das suas principais obras são: The Stagecraft of Aeschylus (1977), Greek Tragedy in Action (1978), e Comic Angels (1993). A sua área de pesquisa e interesse é sobretudo o mundo antigo grego e as suas influências ou receptividade na contemporaneidade. Teve, igualmente, uma participação relevante em produções teatrais relativas ao mundo grego: The Oresteia, no National Theatre (1980-81), The Thebans, no RSC (1991-92), e The Oresteia, novamente no National Theatre (1999-2000).

[2] Poetisa grega que viveu na cidade de Mitilene, importante centro cultural no século VII a.C.. Nascida algures entre 630 e 612 a.C., pensa-se que era de pequena estatura e de cor escura. Foi muito respeitada e apreciada na antiguidade, sendo considerada “a décima musa”, no entanto, a sua poesia, devido ao conteúdo erótico, sofreu grande censura no período da Idade Média por parte dos monges copistas, e o que restou da sua obra foram escassos fragmentos.

[3] George Steiner (n. 1929, Paris), é actualmente professor de Literatura Comparada na Universidade de Oxford e de Poesia em Harvard. Foi companheiro de faculdade de Churchill, Cambridge (1961) e mais tarde professor de Literatura Inglesa e Comparada na Universidade de Genebra (1974-1994).

[4] Maurice, Inglaterra, 1987; Produtora(s): Merchant Ivory Produtions, Channel Four Films, Cinecom Pictures, Film Four International.

[5] Professor de grego na Universidade de Stanford, Califórnia. Entre as suas principais obras encontramos: Greek Word Order (1960), Aristophanic Comedy (1972), Greek Homosexuality (1978), e and The Greeks and their Legacy (1989).

[6] Na sua génese, o termo “lésbica” referia-se somente às habitantes da ilha de Lesbos, e nela habitava a famosa poetisa Sappho (séculos VI e VII a.C.), admirada pelos seus poemas sobre amor e a beleza, na maioria dirigidos às mulheres. Por esta razão, o relacionamento amoroso entre mulheres passou a ser conhecido como lesbianismo ou safismo.

[7] Atena personifica a serenidade e a sabedoria características do espírito grego. Segundo a mitologia grega, Zeus, para evitar o cumprimento de uma profecia, engoliu a sua amante grávida, a oceânide Métis, e depois, ordenou a Hefesto que lhe abrisse a cabeça com um golpe de machado e dela nasceu Atena, já armada. Deusa protectora de Atenas e de outras cidades da Ática: simbolizava a guerra justa e possuía uma disposição pacífica, representando a preponderância da razão e do espírito sobre o impulso irracional. Na tragédia Eumênides, Ésquilo deu expressão acabada à figura sábia e prudente de Atena, atribuindo-lhe a fundação do Areópago, conselho de Atenas. O seu principal templo, o Pártenon, ficava em Atenas, onde anualmente se celebravam, em sua honra, as Panatenéias.

[8] Sobre o mito de Acteão, há diversas versões: uns dizem que foi castigado por Zeus por ter tentado arrebatar o amor de Sémele; mas a maioria diz que sofreu a sanção da deusa Ártemis, por a ter vigiado a tomar banho nua, numa nascente. Surpreendida, ela transformou Acteão em veado e, em seguida, enfureceu os cães que compunham a sua matilha e eles devoraram o próprio dono sem o reconhecerem. Consumada a tragédia, os cães foram ganindo por toda a floresta à procura de Acteão. Reza a história que a sua busca os conduziu à caverna do Centauro Quíron que, para os consolar, esculpiu uma estátua representado o dono.

[9] Na mitologia grega, Ártemis era filha de Zeus e de Leto, e irmã gémea de Apolo. Tida como virgem e defensora da pureza, era também protectora das parturientes e estava ligada a ritos de fecundidade; embora fosse em essência uma deusa caçadora, encarnava as forças da natureza e tutelava as ninfas, os animais selvagens e o mundo vegetal. Adorada sobretudo nas áreas rurais, na Ática enfatizou-se pelo seu carácter de “senhora das feras”, na ilha de Eubeia foi considerada protectora dos rebanhos e no Peloponeso reconheceu-se pelo seu domínio sobre o reino vegetal e foi associada à água vivificante. Apesar desta imagem protectora, Ártemis exibia facetas cruéis: matou o caçador Órion; condenou à morte a ninfa Calisto por deixar-se seduzir por Zeus; transformou Acteão em veado para ser despedaçado pela sua própria matilha e, com Apolo, exterminou os filhos de Níobe e Anfião, para vingar uma suposta afronta. As suas ocupações principais eram a caça e a dança, no que se fazia acompanhar pelas Ninfas. Ártemis tinha diversas representações. As cópias da sua estátua no templo de Éfeso, uma das maravilhas do mundo antigo, correspondem ao modelo das chamadas deusas-mães e apresentam muitos seios, símbolo de fecundidade. Na Grécia clássica foi representada com longa túnica e arco retesado, enquanto na época helenística exibia túnica curta e alijava com setas, seguida por uma matilha ou um filhote de veado. Essa imagem foi também a mais comum em Roma, que identificou Ártemis com Diana.

[10] Na versão de Homero, a Guerra de Tróia começa com o casamento de um homem conhecido como Peleus e sua esposa Tétis, a deusa do mar. Todos os deuses e deusas foram convidados, com uma excepção: Éris, a deusa da discórdia. Ofendida, planeia a vingança servindo-se da vaidade das deusas no casamento. Éris lança, numa mesa entre as deusas, uma maçã de ouro na qual estava inscrito as seguintes palavras: “à mais bela das deusas”. Afrodite, Atena e Hera imediatamente competem pela maçã. Zeus não se envolve e ordena que o humano Páris, um dos filhos do rei Príamo de Tróia, seja o juiz. Todas as três procuram suborná-lo e conquistá-lo na sua escolha. Hera oferece o poder de um império; Atena oferta vitórias no campo de batalha e Afrodite, o amor da mulher mais bela do mundo: Helena, a filha de Zeus, casada com Menelau, o guerreiro grego. Páris escolhe o presente de Afrodite e navega para Esparta para reivindicar sua recompensa. Depois de passar dez dias com o casal, Menelau sai numa jornada, dando a Páris a hipótese de fugir com Helena. Ao regressar, Menelau descobre que sua esposa o abandonou. Encolerizado, Menelau navega com todo o exército grego para Tróia a fim de reclamar Helena – começando assim a Guerra de Tróia.

[11] A lenda conta que Leda era uma jovem e bela princesa, recém-casada com Tíndaro, herdeiro do reino de Esparta. Gostava de deitar-se na relva, a apreciar o canto dos pássaros e exibia o seu corpo aos raios solares, sob olhares indiscretos dos deuses. Certa vez, Zeus, que ia a caminho da cidade de Tróia, encontrou Leda deitada seminua na relva e parou para contemplá-la de longe. Temendo assustá-la com a sua figura gloriosa e resplandecente, Zeus converte-se num cisne imenso e de bela plumagem para poder cortejar a princesa. Refira-se, que o deus supremo temia também que, por ser a bela princesa recém-casada, provavelmente o repeliria. Ao ver o belo cisne aproximando-se, Leda senta-se e começa a observá-lo. Diante dos olhos da princesa, o cisne começa a mover as suas belas plumas com grande excitação, movimentando o seu corpo em forma de dança e mostrando o seu desejo assim como uma voz delicada que emitia sinais de atracção e paixão. Leda estava fascinada e o cisne aproximou-se mais e começou a tocá-la e a acariciá-la com as suas plumas e o seu longo pescoço Excitada, Leda deitou-se novamente na relva e aguardou que o cisne se deitasse sobre ela, e então amaram-se. Meses depois a princesa sente fortes dores e percebe que do seu ventre haviam saído dois ovos: do primeiro, nascem Castor e Helena, do segundo, Pólux e Clitemnestra. Porém Hera, irmã e esposa de Zeus, com ciúmes, persegue e proíbe Leda de viver no reino. Assim, Zeus compensa Leda, convertendo-a em deusa e reservando-lhe um espaço no céu, na forma de uma estrela na constelação de Cisne.


rotasfilosoficas às 22:39

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