«Com frequência se debateu a questão de saber como foi possível à filosofia grega ter começado com os problemas da natureza e não com os relativos ao homem. [...]
O ponto de partida dos pensadores naturalistas do séc. VI era o problema da origem, a physis, que deu o seu nome à totalidade do movimento espiritual e forma de especulação que originou. Isto não é injustificado, se tivermos presente o significado originário da palavra grega e não lhe misturarmos a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o que na nossa linguagem habitual denominamos metafísica. Era a ele que se subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica e só gradualmente se foi libertando dela. No conceito grego de physis, estavam, indivisas, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe actualmente. Era natural que a tendência inata dos Jónios – grandes exploradores e observadores – para a investigação levasse as questões até ao maior aprofundamento, onde aparecem os problemas últimos. É natural também que, uma vez posto o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos factos e a explicação dos fenómenos particulares. [...]
Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os Gregos puseram ao serviço do seu problema último – da origem e essência das coisas – as observações empíricas que do Oriente receberam e enriqueceram pelas suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos fundado na observação das realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É neste momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, porventura, o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos mitos. Porém, o simples facto de ter sido um movimento espiritual unitário, conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e recíproca ligação, já demonstra o seu carácter científico e racional. A conexão do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jónica, torna-se clara, se se reparar que os seus três primeiros pensadores – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas (princípios do séc. V). Tão evidente como a súbita interrupção dum elevado florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção brutal dum destino histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do tipo espiritual desta magnifica série de grandes homens, um pouco anacronicamente designados de “escola milesiana”. O modo de propor e resolver os problemas segue nos três a mesma direcção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos fundamentais à física grega de Demócrito até Aristóteles.
Jaeger, W., Paideia, A formação do Homem Grego, Lisboa,
Aster, 1979, pp. 176-183.