Para aprender a pensar e ensinar a morrer. Especialistas em direito, medicina, física e filosofia dizem que a diminuição do peso da disciplina no ensino é "um erro grave".
Como um sabonete me ajudou a compreender a “ética da observação”
A primeira experiência de trabalho de campo na Índia levou Rosa Maria Perez a uma pequena aldeia do Gujarat onde não havia electricidade nem água corrente.
Inicialmente, Perez enfrentou grandes dificuldades de comunicação nesta pequena comunidade hindu, mas acabou por fazer o seu trabalho. Em pouco tempo, estava integrada e tinha transmitido aos habitantes o hábito do uso do sabonete, que passou a comprar para muitos deles nas suas idas à cidade de 15 em 15 dias.
Quando regressou à aldeia anos depois, para novo período de estudo, ficou surpreendida e compreendeu que tinha cometido “um erro”. Apesar de ter enfrentado três anos de seca e de não haver arroz nem vegetais, a aldeia não tinha deixado de usar o sabonete que ela lhe tinha dado a conhecer. “Só então reparei que o sabonete tinha passado de um objecto lúdico e de sedução, a objecto de poder e a indicador de estatuto. As pessoas estavam divididas entre as que tinham sabonete e as que não tinham”. É em parte por causa deste episódio que Perez não é hoje capaz de conceber a Antropologia sem humanismo nem sem Filosofia. “A filosofia ensinou-me a olhar – há na Filosofia uma ética da observação a que a Antropologia é relativamente alheia”. Com ela, resumiu a filósofa Maria Filomena Molder, é reforçada a “preocupação de o observador não interferir no objecto observado”.
A filosofia está a desaparecer dos currículos e isso compromete a formação das pessoas. Deixar que a disciplina seja progressivamente apagada limita o acesso dos alunos a um instrumento de conhecimento que ensina a pensar e a olhar, defendem os que se opõem à eliminação do exame nacional de filosofia para o 10.º e 11.º anos, determinada por um decreto-lei de Fevereiro deste ano. (…)
A filosofia e a arte de morrer
Para os não-filósofos que estiveram no debate, a importância da filosofia é muito mais quotidiana do que académica, embora a sua manutenção nos currículos não deva ser posta em causa.
Lobo Antunes, neurocirurgião e autor de livros como Um Modo de Ser, começou a interessar-se pela filosofia com três obras de Paul Foulquié, mas foi com o filósofo português Fernando Gil que a curiosidade se intensificou.
“O Fernando Gil escreveu que «a filosofia é um acto de inocência porque interroga o admirável do mundo», lembrou Lobo Antunes, para quem é impossível conceber a medicina sem a filosofia e a poesia: “A poesia ensinou-me a apurar o rigor no uso das palavras porque no poema, tal como no genoma, basta uma palavra para que saia monstruoso, perro, coxo. A filosofia permite-me interrogar o que de admirável há no sofrimento e, para citar [Michel de] Montaigne, permite aprender e ensinar a morrer. Há na filosofia uma ética da esperança e um desafio à alegria de pensar.”
Tal como Lobo Antunes, o matemático Nuno Crato e o físico Carlos Fiolhais consideram um “erro grave” o desinvestimento no ensino da filosofia. Para o primeiro, ela forma com a matemática (raciocínio lógico, quantitativo e qualitativo) e o português (ler, dialogar, interpretar) o grupo das “três áreas fundamentais na formação do cidadão”. Para o segundo, é um instrumento para “ensinar a pensar bem”.
O “direito à filosofia”
“Fui para a física porque achei que ela me escondia qualquer coisa”, disse Fiolhais.
“Podia ter escolhido a filosofia, que formula questões sobre tudo. A física faz menos perguntas e é mais fácil”. A ligação entre as duas disciplinas sempre foi evidente – vem de Kant, que começou como físico, a primeira ideia de galáxia, explicou.
“Ainda que de maneiras diferentes, a física e a filosofia preocupam-se com o indivíduo, pensam nele. Mesmo os grandes computadores servem para resolver os problemas humanos.”
Fernanda Palma, professora da Faculdade de Direito de Lisboa e juíza do Tribunal Constitucional, introduziu no debate a questão do “direito à filosofia”, definindo-o, a partir do filósofo francês Jacques Derrida, como “o direito a pensar as coisas até ao fim”. Para a jurista, a filosofia continua a ser central porque o direito a ela está relacionado com “o dever da sociedade em garantir a liberdade de pensamento”.
A antropóloga Rosa Maria Perez recorreu a uma das suas primeiras experiências de campo na Índia para falar da importância da filosofia na observação de outras culturas (ver caixa) e na desconstrução de processos cognitivos.
Para fechar o debate, o filósofo José Gil sublinhou o “laço profundo” que há entre o acto de pensar e a filosofia e responsabilizou a “sociedade da opinião” – a opinião é o principal inimigo da filosofia, disse, porque tem certezas e não dúvidas – pelo progressivo desaparecimento da disciplina. “Quando uma criança de quatro anos pergunta porque é que a árvore se chama árvore está a filosofar, só que não sabe.” (…)
In Público, 16/12/2006