«Não gostaria de ser homem ou de ser mulher se a impossibilidade de mudar o mundo fosse algo tão óbvio quanto é óbvio que os sábados precedem os domingos.
Não gostaria de ser mulher ou homem se a impossibilidade de mudar o mundo fosse verdade objectiva que puramente se constatasse e em tomo de que nada se pudesse discutir.
Gosto de ser gente, pelo contrário, porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível. É a relação entre a dificuldade e a possibilidade de mudar o mundo que coloca a questão da importância do papel da consciência na história, a questão da decisão, da opção, a questão da ética e da educação e de seus limites.
A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projectos quanto podem ter projectos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação. […]
O discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, inclusive por lucrar com ela. A acomodação é a expressão da desistência da luta pela mudança. Falta a quem se acomoda (ou quem se acomoda fraqueja), a capacidade de resistir. É mais fácil a quem deixou de resistir, ou a quem sequer foi possível em algum tempo resistir, aconchegar-se na mornidão da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética.
Mas, é importante enfatizar que há uma diferença fundamental entre quem se acomoda perdidamente desesperançado, submetido de tal maneira à asfixia da necessidade, que inviabiliza a aventura da liberdade e a luta por ela, e quem tem, no discurso da acomodação, um instrumento eficaz de sua luta – a de obstaculizar a mudança. O primeiro é o oprimido sem horizonte; o segundo, o opressor impenitente. […]
Gostaria de sublinhar, na linha destas considerações, que o exercício constante da “leitura do mundo”, demandando necessariamente a compreensão crítica da realidade, envolve, de um lado, sua denúncia, de outro, o anúncio do que ainda não existe. A experiência da leitura do mundo que o toma como um texto a ser “lido” e “reescrito” não é na verdade uma perda de tempo, um bla-bla-blá ideológico, sacrificador do tempo que se deve usar, sofregamente, na transparência ou na transmissão dos conteúdos, como dizem educadores ou educadoras “pragmáticos”. Pelo contrário, feito com rigor metódico, a leitura do mundo – que se funda na possibilidade que mulheres e homens, ao longo da longa história, criaram de inteligir a concretude e de comunicar o inteligido – se constitui como factor indiscutível de aprimoramento da linguagem. A prática de constatar, de encontrar a ou as razões de ser do constatado, a prática de denunciar a realidade constatada e de anunciar a sua superação, que fazem parte do processo da leitura do mundo, dão lugar à experiência da conjectura, da suposição, da opinião a que falta porém fundamento preciso. Com a metodização da curiosidade, a leitura do mundo pode ensejar a ultrapassagem da pura conjectura para o projecto de mundo.
A denúncia e o anúncio criticamente feitos no processo de leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos. Este sonho ou projecto que vai sendo perfilhado no processo da análise crítica da realidade que denunciamos está para a prática transformadora da sociedade como o desenho da peça que o operário vai produzir e que tem em sua cabeça antes de fazê-la está para a produção da peça.
Coerente com a minha posição democrática, estou convencido de que a discussão em torno do sonho ou do projecto de sociedade por que lutamos não é privilégio das elites dominantes nem tampouco das lideranças dos partidos progressistas. Pelo contrário, participar dos debates em torno de um projecto diferente de mundo é um direito das classes populares que não podem ser puramente “guiadas” ou empurradas por suas lideranças até o sonho.
Com a invenção da existência que mulheres e homens criaram com os materiais que a vida lhes ofereceu, se lhes tornou impossível a presença no mundo em referência a um amanhã. A um amanhã ou a um futuro cuja forma de ser, porém, jamais é inexorável. Pelo contrário, é problemática. Um amanhã que não está dado de antemão. Preciso de lutar para tê-lo. Mas preciso de ter dele também um desenho enquanto luto para construi-lo, como o operário precisa do desenho da mesa na cabeça antes de produzi-la. Este desenho é o sonho por que luto.
É neste sentido, entre outros, que a pedagogia radical jamais pode fazer nenhuma concessão às artimanhas do “pragmatismo” que reduz a prática educativa ao treinamento técnico-científico dos educandos. Ao treinamento e não à formação. A necessária formação técnico-científica dos educandos por que se bate a pedagogia crítica não tem nada que ver com a estreiteza tecnicista e cientificista que caracteriza o mero treinamento. É por isso que o educador progressista, capaz e sério, não apenas deve ensinar muito bem sua disciplina, mas desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica em que é uma presença. […]
Ao sublinhar a importância fundamental da ciência, a educadora progressista deve enfatizar, também, aos […] pobres como aos ricos o dever que temos de permanentemente nos indagarmos em tomo de a favor de quê e de quem fazemos ciência.
Ajudar na elaboração do sonho de mudança do mundo como na sua concretização, de forma sistemática ou assistemática, na escola, como professor de matemática, de biologia, de história, de filosofia, de problemas da linguagem, não importa de quê, em casa como pai ou como mãe, em nosso trato permanente com filhas e filhos, em nossas relações com auxiliares que connosco trabalham, é tarefa de mulheres e de homens progressistas. De homens e de mulheres que não apenas falam de democracia mas a vivem, procurando fazê-la cada vez melhor.
Se somos progressistas, realmente abertos ao outro e à outra, devemo-nos esforçar, com humildade, para diminuir, ao máximo, a distância entre o que dizemos e o que fazemos.
Não podemos falar a nossos filhos, ou em sua presença, de um mundo melhor, menos injusto, mais humano e explorar quem trabalha connosco. Podemos às vezes pagar melhor salário, no entanto caímos na cantilena hipócrita segundo a qual “a realidade é assim mesmo e que não sou eu só que salvarei o mundo”. É preciso testemunhar a nossos filhos que é possível ser coerente, mais ainda, que ser coerente é um final de inteireza de nosso ser. Afinal a coerência não é um favor que fazemos aos outros, mas uma forma ética de nos comportar. Por isso, não sou coerente para ser compensado, elogiado, aplaudido.
Nem sempre fácil de ser assumida, a busca da coerência educa a vontade, faculdade fundamental para o nosso mover-nos no mundo. Com a vontade enfraquecida é difícil decidir, sem decisão não optamos entre uma coisa e outra, não rompemos.»
Paulo Freire, 1997