Estamos a poucos dias de celebrar os 47 anos da “Revolução dos Cravos”, ou seja, daquela madrugada por que todos esperávamos e que os militares do MFA (Movimento das Forças Armadas) planearam depois do fracasso do “Golpe das Caldas” (16 de março de 1974) – fruto de uma estratégia delineada, comandada e bem-sucedida, na altura, pelo major de 37 anos, Otelo Saraiva de Carvalho –, que ofereceu a Portugal e aos portugueses não só o célebre Programa dos 3 Ds (Democratizar, Descolonizar e Desenvolver), mas sobretudo a capacidade de se promoverem, no nosso país, um conjunto de transformações económicas, sociais, culturais e “todas as liberdades”. Curiosamente, este ano estamos perto de igualar o número de anos em democracia com o número de anos que durou a ditadura do Estado Novo (48), período que começou com o pronunciamento militar de 28 de maio de 1926, golpe iniciado na ‘cidade dos arcebispos’, Braga.
Coincidência ou não, nos últimos 12 meses, num momento atípico à escala global e nacional, neste “tempo excecional” que foi um período de ansiedade e sofrimento (onde o medo do outro vigorou), de dor e luto para milhares de famílias portuguesas, de separação, confinamento, de restrição às nossas múltiplas liberdades – e que decerto deixará marcas na vida económica, financeira e social das nações, assim como na vida particular de cada um –, este tempo invulgar que imprimiu novas regras, comportamentos e costumes/rituais à vida dos cidadãos, tudo em nome de um bem maior que é a saúde pública e a contenção da pandemia da Covid-19, este longo e penoso ano desconsiderou (melhor, limitou) visivelmente o que é essencial no ser humano: a liberdade.
Desde que o novo coronavírus invadiu e ocupou todo o espaço público e político (e a agenda), marcando a abertura diária nos noticiários televisivos e na rádio, nas capas da imprensa escrita, na intervenção dos representantes políticos (desde os governos a toda a oposição), no espaço facultado ao comentário ou opinião, tudo o resto, ou seja, todos os outros assuntos ou problemas parecem ter sido já solucionados ou, então, desaparecido. Infelizmente, não foi ainda encontrado um ponto de equilíbrio entre a informação que naturalmente interessa e tranquiliza a opinião pública sobre o tema/problema, e todos os outros que diariamente emergem no país, na Europa ou no mundo. Por outras palavras, esta nova infeção viral à escala global que já causou a morte a mais de dois milhões e seiscentos mil cidadãos (no mundo) desde que foi detetada em 2019, subordinou a vontade, decisão e até a (in)competência política à voz, aos números, às tabelas, gráficos e projeções/previsões anunciadas pelos epidemiologistas, virologistas, pneumologistas, matemáticos…, em suma, aos agora anunciados como “especialistas” (diferente de cientista), aqueles que estão ao serviço da nação e que podem/devem falar e que todos nós devemos acompanhar e atender. (Os mais críticos falam inclusive de um “Governo de especialistas” e referem que é grave que a política, nessa velha questão da sua relação com a ciência, abdique, agora, abertamente a favor da ciência).
O paradigma dominante é a Covid-19, uma doença que colocou o país em estado de “emergência” (já foi aprovado o 13º…, renovados a cada 15 dias e sempre justificados pela situação “extremamente grave” que o país ainda vive) e de “exceção”, sendo que a vida dos portugueses, num regime de democracia liberal, ganhou novos e inimagináveis contornos, quer para as crianças e jovens que não viveram e conheceram o antigo regime, quer para as mais velhas gerações, em particular aquela que devolveu a liberdade aos portugueses.
O(s) Governo(s) tomou(ram) conta da opinião pública (e amplia o seu poder a olhos vistos), esvaziou o pluralismo de expressão existente no parlamento, legisla por decreto, “suspendeu” (ou interrompeu) muitos dos direitos e liberdades democráticas (age agora nas ‘zonas de sombra’ do estado de direito) e, inflado e arrogantemente, não reconhece o erro ou falhas, incoerências, abusos/exageros e, particularmente, não aceita a crítica. Recordo que o termo “crítica” deriva de “julgar”, na medida em que o conhecimento humano não conhece a Verdade e precisa, então, de um ‘critério’ através do qual discerne o verdadeiro do falso/erro. Criticar não é dizer mal, condenar, injuriar e muito menos falar daquilo que se desconhece ou não percebe. O seu sentido construtivo é talvez “sugerir” para que algo seja melhor.
Ora, para aqueles que preservam alguma memória, a atual Ministra da Saúde, numa recente entrevista televisiva, não só rejeitou que tenha existido falta de planeamento por parte do Governo e das autoridades de saúde (sobretudo na 3ª vaga da pandemia), como considerou “criminoso” a crítica apresentada por qualquer cidadão (cito: “É criminoso para quem, diariamente, nos mais variados serviços, faz um esforço enorme para organizar e preparar as coisas”). Se nos fosse permitido recuar algumas dezenas de anos, o tom deste discurso não era muito diferente daquele proferido pelo Estado Novo que não permitia que a ordem social fosse questionada e a célebre elocução doutrinária “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever”, ou seja, a famosa verbalização que não se discute nem se questionam os líderes.
De forma sintética, o povo (e todas as vozes discordantes) tinham (e parece que voltaram a ter) o dever de elogiar ou de se emudecer perante o líder, pois este, usando da faculdade que a lei lhe confere e de um espírito culto, “especializado”, será sempre bem-sucedido na tentativa de restabelecer a ordem, a moralidade, a verdade nas nossas finanças, ou seja, será capaz de resolver todos os problemas e desafios que afligem os portugueses e o país.
Estamos agora em março de 2021 e um ex-presidente da República acaba de dizer que Portugal vive “numa situação de democracia amordaçada”, considerando que é uma “vergonha” os números recentes da pandemia, que colocaram o país como “recordista” de mortes por milhão de habitantes. Talvez o estilo e vocábulo adotado na observação não seja o mais adequado – por diversas razões, o ex-chefe de Estado em questão não terminou da melhor forma o seu último mandato e ficou associado a “grandes buracos negros”, como o caso do Banco Português de Negócios (BPN) e a derrocada do BES, em particular por declarações proferidas em julho de 2014 –, pelo que logo outros vieram dizer que Portugal está é “anestesiado” ou “sonâmbulo”. Uma coisa é certa, se “o governo mais útil é o governo que menos interfere na vida dos governados” (Henry David Thoreau), então o atual executivo foi não só um governo que não antecipou (e realizou) tudo o que era necessário para minorar os efeitos da atual pandemia (e que ainda por cima se queixa das críticas), que se imiscuiu – e muito – na vida dos portugueses e que reage de modo infeliz quando um qualquer cidadão – gozando do direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra (liberdade de expressão, art.º 37 da CRP), fulcral numa sociedade que se quer aberta e justa – , estando alerta, lhe aponta falhas, o critica e obriga a decidir e agir melhor. Será que a Covid-19 também interrompeu o direito e a liberdade de criticar? Certamente, o silêncio ou elogio seriam preferíveis.
Miguel Alexandre Palma Costa
in Diário de Notícias da Madeira, 20 de março de 2021
(https://www.dnoticias.pt/2021/3/20/254739-calar-elogiar-ou-criticar/)
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