No passado dia 20 de outubro, o programa Prós e Contras da RTP dedicou mais uma das suas emissões a um debate sobre a escola pública, intitulado “Vida difícil nas escolas”, onde os intervenientes/interlocutores presentes expuseram argumentos sobre o processo – atribulado e pouco claro – de colocação de professores, nas escolas, no início deste ano lectivo, a questão da autonomia das mesmas e as consequências da qualidade (ou falta dela) no/do ensino para os alunos.
Ora, relativamente às posições apresentadas (e também graças a declarações prestadas por uma “jovem” deputada regional do PSD-Madeira num outro programa da RTP-M), gostaria de tecer aqui algumas considerações – talvez um pouco “contracorrente” – mas que julgo que alguns docentes e até ex-docentes compartilham, e que passo a enunciar:
- Primeiro, quanto ao processo de colocação de professores, vulgarmente chamado de concurso anual de professores (desde o “regular” – quadrienal para os docentes dos quadros – ao “extraordinário”, que trata docentes contratados de modo diverso e algo discriminatório dos docentes com contrato resolutivo a termo incerto, ex-quadros de nomeação definitiva) todos sabemos que o mesmo não é “íntegro”, transparente e regido por normas inteiramente constitucionais/legais, como é o caso dos professores das regiões autónomas que se vêm impossibilitados de aceder a determinados campos do concurso (por exemplo, os professores dos QZP das RA) para poderem ingressar numa escola não agrupada ou agrupamento de escola de Portugal continental. Aliás, mesmo contra pareceres jurídicos e alertas dados por organizações sindicais e até a Provedoria de Justiça, o MEC sempre discriminou os docentes das RA que têm o direito constitucional de concorrer em igualdade de circunstância como qualquer professor que tenha provimento no continente.
- Novamente, no programa Prós e Contras foi excessivamente dito e repetido o grave problema dos alunos estarem – e depois de já se ter completado mais de um mês de aulas do calendário escolar deste ano – com professores ainda em falta; de os mesmos estarem a perder as “matérias”; destes não se encontrarem em pé de igualdade com todos os outros alunos que têm todos os professores a leccionar os conteúdos programáticos; e de terem metas curriculares para atingir iguais a quaisquer outros que começaram o ano lectivo com a normalidade devida, na medida em que todos serão alvo de avaliações externas que não diferenciam alunos que começaram a atividade lectiva em setembro ou em novembro. Contudo, e não omitindo a importância das aprendizagens dos alunos, esqueceu-se um pouco o drama/realidade dos professores que dão o melhor de si para que estes possam ter um direito que é legal e moralmente seu, isto é, aprender; professores que ficam colocados a mais de 500 quilómetros de casa, que deixam filhos entregues a familiares ou que se mudam para quartos alugados com os seus próprios filhos privando-os de muitos direitos que também são seus; professores que renunciam aos seus descendentes as “raízes” sociais que são suas e o direito a crescerem numa família biparental; professores e filhos que vivem como nómadas, e ainda por mais na incerteza de um amanhã que mais não tem para lhes oferecer do que o desemprego certo! Sim, a realidade do professor, o respeito pela figura social do professor, a consideração pela missão do professor, a dignidade do professor, isso pouco ou já nada importa!
-Todavia, e não obstante da gravidade da situação, o que verdadeiramente me levou a escrever estas palavras foi a questão da autonomia das escolas. Autonomia é uma palavra “formosa”, mas de que falamos quando evocamos o termo? A que autonomia nos estamos a referir? Que autonomia quer a escola pública? Autonomia para, como disse um dos directores de agrupamento de escola presentes no programa, “poder ficar com um professor para sempre”? Melhor ainda se este professor for membro da sua família, amigo ou referenciado por um qualquer partido político. Neste caso o seu novo emprego tornar-se-á vitalício? Autonomia para selecionar funcionários, serviços e empresas com quem se contratualiza obras ou préstimo de bens/serviços, como por exemplo, o simples aluguer de fotocopiadoras, a venda de produtos alimentares, etc.? Autonomia pedagógica? Autonomia política do MEC? Ou apenas autonomia económico-financeira? Afinal, que tido de autonomia é pretendida? Melhor, será esta “bendita” autonomia mais amiga dos professores e alunos e mais transparente nos seus processos? E será uma autonomia com que contrapartidas? O que dará a escola pública em troca de mais autonomia? Com que se compromete? Melhor qualidade de ensino? Melhores resultados nas avaliações internas e externas? Maior empregabilidade dos alunos no mercado de trabalho? Em poucas palavras, julgo que presentemente nunca a escola pública foi tão autónoma quanto hoje, mesmo com todos os conspectos negativos que lhe possamos apontar.
Neste ponto, gostaria ainda de acrescentar que se a escola pública exige mais autonomia, ela deve dar testemunho de quais as suas reais intenções com tal demanda e inverter (com números reais) a atual situação de uma inexorável falta de “qualidade” crescente do/no ensino em Portugal, e como corroborante de tal facto menos abonatório da educação nacional são os números dos últimos anos que bem o comprovam. Ora, vejamos:
- Sabemos hoje que o financiamento com despesas da educação baixou para níveis de à 10 anos atrás. Por exemplo, em 2013 o estado gastou cerca de 7.108.4 milhões de euros em educação, número muito idêntico ao gasto 10 anos antes, isto é, 2003, ano em que foram gastos 7.005.0 milhões de euros, o que atesta só por si já um significativo decréscimo de investimento no sector. Mas também os resultados dos alunos têm piorado ano após ano em diversos parâmetros, e a situação dos professores não é em nada melhor. Vislumbremos então alguns dados: o número de docentes em exercício nos ensinos pré-escolar, básico e secundário, em 2013, era de 150.311, número só idêntico a 1994, em que era de 151.219 professores, e em 1993, de 149.474. Relativamente aos resultados escolares, também aqui a qualidade não tem atingido o desígnio a que se reserva. Por exemplo, a percentagem do número de alunos com nota positiva nas provas de exame do ensino básico do terceiro ciclo, a Português, é hoje (2014) de 70,9%, muito inferior à percentagem registada em 2008, que era de 84,9%. Praticamente o mesmo ocorre na disciplina de Matemática, onde a percentagem do número de alunos com nota positiva nas provas de exame do ensino básico do terceiro ciclo é, em 2014, de 55,4%, quando em 2009 foi bem superior, o número exacto é 66,0%. Já no ensino secundário, em 2014, à disciplina de Matemática A, os resultados obtidos também foram muito inferiores a 2008, ou seja, passamos de 85,3% de positivas para quase metade, isto é, 44,8% no ano que agora finda, 2014. Já a Português, no secundário, a descida é mais suave, isto é, em 2009, 80,1% dos alunos obtiveram nota positiva no exame, sendo que este ano (2014) somente 77,4%.
Outro número bastante interessante é aquele que se reporta ao número total de alunos matriculados e, em 2013, estavam nesta condição 2.139.977 indivíduos, número muito comparável com 2006, em que eram 2.121.260 indivíduos, mas já bastante inferior ao ano de 1992, onde o total perfazia cerca de 2.305.584 indivíduos. E se também observarmos o número de alunos matriculados pela primeira vez no ensino superior em Portugal, verificamos que em 2008 era de 114.114 indivíduos, mas em 2013 esse número ficava já somente pelos 106.249, menos cerca de 10.000 alunos que no ano anterior (2012).
Ora, face a tudo isto, podemos dizer que é a autonomia das escolas que resolverá o problema de fundo da escola pública? Obviamente, não! O problema é muito mais abrangente, e se é verdade que o diagnóstico está feito e é do domínio público há já bastante tempo, assim como são sobejamente conhecidas as medidas necessárias para alterar toda esta grave situação, digo que ela só será transformável a partir do momento em que se pensar ouvir na verdadeira acepção da palavra os professores - e mesmo os professores e não somente as suas estruturas sindicais com as quais muitos já não se revém - , alunos, pais/encarregados de educação, autarquias e, mais importante que tudo, quando existir uma verdadeira vontade política na 5 de Outubro de dar à escola pública aquilo que ela merece desde à muito, isto é, liberdade de acção e responsabilização efectiva dos seus diversos elementos/representantes pelo trabalho desenvolvido, permeando o mérito de quem efectivamente o tem.
Miguel Alexandre Palma Costa
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