1. No início do passado mês de novembro, o Governo nacional, perante a nova controvérsia de acabar com os chumbos até ao 9º ano, sucessivos pedidos de esclarecimento a António Costa sobre o seu ‘plano’ para combater as retenções e desistências – cerca de 50 mil alunos, de acordo com os números ostentados – e diante a possibilidade de haver passagens administrativas (logo negadas) de alunos, levantou, na reta final da segunda década do milénio, mais uma vez, aquele que é talvez o maior problema cultural do nosso tempo: a Educação.
Ora, se o princípio de acabar com os chumbos se distendesse até ao 12º ano de escolaridade e estivesse em vigor, então, no corrente ano letivo todos os alunos que frequentam o ensino básico e secundário seriam já nascidos no século XXI, e todos os professores são, impreterivelmente, do século XX. Isto significa, como é evidente, que existiu um hiato de tempo (alguns autores falam de uma a duas gerações) e uma aceleração desse mesmo tempo – só possível com a tecnologia, inovação, informação, conhecimento, tudo efeitos do fulgor da globalização – que a escola procurou acompanhar para preparar os jovens para um mundo em permanente mudança e que prossegue para a era digital, a ciência dos dados, robotização e inteligência artificial. Contudo, se esta mudança e evolução é agora uma evidência, pois irá (melhor, já está) acontecer, também neste processo tudo é uma questão de oportunidades e prazos, e as instituições de ensino (e os professores que nelas trabalham) necessitam e exigem, agora mais do que nunca, de uma atenção especial, acompanhada de mais formação, novos meios materiais e “incentivos”, pois só assim conseguirão executar os compromissos profissionais agendados pelas oscilantes diretrizes políticas e prover as dinâmicas exigidas de visam corrigir desigualdades sociais, a que acresce o indispensável progresso do país.
2. Os “Millennials”, isto é, os cidadãos que nasceram durante os anos 80 e início dos 90, talvez ainda se recordem de um ex-Primeiro-ministro, agora Secretário-Geral da ONU, que encabeçou os XIIIº e XIVº Governos Constitucionais e utilizou um slogan deveras emocional para revigorar uma área que precisava (e continua a necessitar) de reformas e de um forte investimento público: refiro-me à famosa “Paixão pela Educação”, proferida por António Guterres.
René Descartes, por muitos considerado o ‘pai’ da época moderna da história da Filosofia e representante do racionalismo, antecipou o resultado desta “paixão”, na medida em que para ele “as paixões são todas boas por natureza e nós apenas temos de evitar o seu mau uso e os seus excessos”. Guterres tinha uma paixão com razão. Era (e continua a ser) um homem de diálogo, fazedor de pontes, um humanista, visionário, alguém que sabe que os resultados na área da educação não surgem de um dia para o outro, de forma rápida e mágica, e que a educação deve ser uma prioridade e um desígnio nacional que deve unir, mobilizar e não dividir ou ser motivo de disputa político-partidária. Mas não foi preciso esperar muito para que esta “sensibilidade apurada” e paixão pela educação – desde o primeiro ciclo até ao ensino superior, e não esqueço aqui Mariano Gago, referência incontornável de uma geração, quer como ministro quer o papel fulcral que teve na divulgação científica e no aumento da cultura científica dos portugueses sem paralelo na história – desse lugar a um divórcio espinhoso e conflituoso com os professores. Quem não recorda ainda o dia 8 de novembro de 2008, data da mega manifestação que juntou perto de 120 mil professores, em Lisboa, contra as políticas educativas de uma ministra (Maria de Lurdes Rodrigues) que proferiu a célebre frase “perdi os professores, mas ganhei os pais e a população”, a mesma responsável política que atacou, denegriu, desuniu e dividiu (entre professores e professores titulares) uma classe profissional que até então era dotada de respeitável credibilidade e autoridade junto da opinião pública.
O ministro Nuno Crato, aquele que considerou o Dr. Passos “um herói nacional”, não reativou a paixão pela educação, pior, desinvestiu na área e entregou-se cegamente a um impulso que a arrastou para o excesso de burocracia, a elitização do sistema educativo (sobrevalorização dos exames, resultados e rankings); congelou as progressões nas carreiras, propagou a desconsideração social dos professores, alterou currículos e modelos de avaliação dos alunos várias vezes, em suma, foi um ministro que contribuiu ativamente para deterioração das condições de trabalho nas escolas e a redução inopinada e desequilibrada de custos e de professores, que agora tanto escasseiam em algumas áreas científicas e que as muitas escolas procuram contratar. Tiago Brandão Rodrigues, a escolha de António Costa, também não reavivou a “paixão pela educação” enquanto titular da pasta no XXIº Governo Constitucional, e nem parece querer fazê-lo nesta sua segunda passagem enquanto ministro. Assiste, de modo impávido e sereno, ao naufragar do sistema público de ensino e, depois de 4 anos no poder, ainda acusa e responsabiliza o seu antecessor no cargo, por exemplo, pelas oscilações negativas nas áreas das ciências e leitura, registadas pelos alunos portugueses na última edição do PISA (Programme for International Student Assessment). Ao mesmo tempo, nada declara nem concebe para inverter uma realidade anunciada que é a de que a maioria dos grupos de recrutamento vão perder mais de metade dos docentes do quadro até 2030; que algumas disciplinas poderão inclusive desaparecer dos currículos com a aposentação de mais de 90% dos seus respetivos professores; que continuam a existir turmas sem professor a certas disciplinas ao fim de mais de três meses de aulas; que apesar da redução, a taxa de abandono precoce na educação e formação, em Portugal, ainda ronda os 12%; para não mencionar que mais de 60% dos professores portugueses estão desmotivados e sofrem de “exaustão emocional”, não esquecendo aqui os mais recentes dados sobre a violência (e a indisciplina dos alunos) contra professores, creio que agora talvez “mais reais", apesar de muitos silenciarem os factos e não apresentarem queixa por receio de represálias e de serem acusados de não demonstrarem ‘orgulho’ em pertencer a uma determinada instituição de ensino.
3. Em Portugal, se a paixão pela educação ainda existe, ela não passa já há alguns anos nem pela 5 de Outubro (agora transferida para a Avenida Infante Santo) nem pelo Palácio de São Bento, mas encontra-se sim nas milhares de escolas do país onde educadores, professores, pessoal técnico e auxiliar (verdadeiros “mestres” incógnitos), no seu quotidiano, continuam a demonstrar um profissionalismo – com elevado sentido de vocação – e uma dedicação muito especial à missão que lhes foi confiada, despertando nos alunos “poderes e sonhos além dos seus” (George Steiner), ou seja, está patente nas salas de aula, anfiteatros, laboratórios, ginásios e até os corredores e pátios escolares, onde o trabalho diário exercido pelos profissionais da educação visa fundamentalmente que todos os alunos alcancem os seus objetivos e sejam felizes, e só assim podemos falar verdadeiramente de sucesso educativo que não tem “um dono”.
É um facto indubitável que hoje se assiste a uma desvalorização do trabalho realizado pelos professores, que são assim os únicos responsabilizados pela situação da educação em Portugal. No entanto, a necessidade de transmitir conhecimentos, competências e até valores, e de os adquirir, são uma constante da natureza humana e, portanto, a relação de ensino-aprendizagem entre professor-aluno(s), reconhecida numerosas vezes pelos próprios alunos, deverá continuar a subsistir pelo menos enquanto existirem sociedades e humanidade. Eles não esquecem o impacto dos verdadeiros mestres sobre o presente e o seu futuro e, adaptando a célebre frase de Bernardo de Chartres, mencionada por João de Salisbúria (Metalogicon III), se hoje “podem ver mais e mais longe não é porque a sua visão seja mais aguda, mas porque eles os carregaram no alto e os levantaram acima da sua altura”.
Miguel Alexandre Palma Costa
(artigo de opinião in Diário de Notícias da Madeira, 31.12.2019)
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