Este espaço comunicativo foi pensado com o propósito de facultar a todos os interessados um conjunto de reflexões e recursos didácticos relativos ao ensino das disciplinas de Filosofia e Psicologia, acrescentado com alguns comentários do autor.

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Sexta-feira, 11 de Maio de 2007

O Mito de Er (Platão, República)

 

 

 

 

«- A verdade que o que te vou narrar não é um conto de Alcínoo, mas de um homem valente, Er o Arménio, Panfílio de nascimento. Tendo ele morrido em combate, andavam a recolher, ao fim de dez dias, os mortos já putrefactos, quando o retiraram em bom estado de saúde. Levaram-no para casa para lhe dar sepultura, e, quando, ao décimo segundo dia, estava jazente sobre a pira, tornou à vida e narrou o que vira no além. Contava ele que, depois que saíra do corpo, a sua alma fizera caminho com muitas, e havia chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aberturas contíguas uma à outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas. No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita, que subia para o céu, depois de lhes terem atado à frente a nota do seu julgamento; ao passo que, os injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito. Quando se aproximou, disseram-lhe que ele devia ser o mensageiro, junto dos homens, das coisas do além, e ordenaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que havia naquele lugar. Ora ele viu que ali, por cada uma das aberturas do céu e da terra, saíam as almas, depois de terem sido submetidas ao julgamento, ao passo que pelas restantes, por uma subiam as almas que vinham da terra, cheias de lixo e de pó, e por outra desciam as almas do céu, em estado de pureza. E as almas, à medida que chegavam, pareciam vir de uma longa travessia e regozijavam-se por irem para o prado acampar, como se fosse uma panegíria[1]; e as que se conheciam, cumprimentavam-se mutuamente, e as que vinham da terra faziam perguntas às outras, sobre o que se passava no além, e as que vinham do céu, sobre o que sucedia na terra. Umas, a gemer e a chorar, recordavam quantos e quais sofrimentos haviam suportado e visto na sua viagem por baixo da terra, viagem essa que durava mil anos, ao passo que outras, as que vinham do céu, contavam as suas deliciosas experiências e visões de uma beleza indescritível. Referir todos os pormenores seria, ó Gláucon, tarefa para muito tempo. Mas o essencial dizia ele que era o que segue. Fossem quais fossem as injustiças cometidas e as pessoas prejudicadas, pagavam a pena de tudo isso sucessivamente, dez vezes por cada uma, quer dizer, uma vez em cada cem anos, sendo esta a duração da vida humana – a fim de pagarem, decupilando-a, a pena do crime; por exemplo, quem fosse culpado da morte de muita gente, por ter traído Estados ou exércitos e os ter lançado na escravatura, ou por ser responsável por qualquer outro malefício, por cada um desses crimes suportava padecimentos a duplicar; e, inversamente, se tivesse praticado boas acções e tivesse sido justo e piedoso, recebia recompensas na mesma proporção. Sobre os que morreram logo a seguir ao nascimento e os que viveram pouco tempo, dava outras informações que não vale a pena lembrar. Em relação à impiedade ou piedade para com os deuses e para com os pais, e crimes de homicídio, dizia que os salários eram ainda maiores.

Contava ele, com efeito, que estivera junto de alguém a quem perguntaram onde estava Ardieu o Grande. Este Ardieu tinha sido tirano numa cidade da Panfília, havia já então mil anos; tinha assassinado o pai idoso e o irmão mais velho, e perpetrado muitas outras impiedades, segundo se dizia. E o interpelado respondera: “Não vem, nem poderá vir para aqui. Na verdade, um dos espectáculos terríveis que vimos foi o seguinte: Depois de nos termos aproximado da abertura, preparados para subir, e quando já tínhamos expiado todos os sofrimentos, avistámos de repente Ardieu e outros, que eram tiranos, na sua quase totalidade; mas também havia alguns que eram particulares que tinham cometido grandes crimes – que, quando julgavam que já iam subir, a abertura não os admitia, mas soltava um mugido cada vez que algum desses, assim incuráveis na sua maldade ou que não tinham expiado suficientemente a sua pena, tentava a ascensão. Estavam lá homens selvagens, que pareciam de fogo, e que, ao ouvirem o estrondo, agarravam alguns pelo meio e levavam-nos, mas, a Ardieu e outros, algemaram-lhes as mãos, pés e cabeça, derrubaram-nos e esfolaram-nos, arrastaram-nos pelo caminho fora, cardando-os em espinhos, e declaravam a todos, à medida que vinham, por que os tratavam assim, e que os levavam para os precipitar no Tártaro”. Então tinham tido terrores múltiplos e variados, mas o maior de todos era o de cada um deles ouvir o mugido, quando ia a subir, e foi com o maior gosto que cada um fez a ascensão ante o silêncio daquele. Eram mais ou menos estas as penas e castigos, e bem assim as vantagens que lhes correspondiam. Depois de cada um deles ter passado sete dias no prado, tinham de se erguer dali, e partir ao oitavo dia, para chegar, ao fim de mais quatro dias, a um lugar de onde se avistava, estendendo-se desde o alto através de todo o céu e terra, uma luz, direita com uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura. Cegaram lá, depois de terem feito um dia de caminho, e aí mesmo, viram, no meio da luz, pendentes do céu, as extremidades das suas cadeias (efectivamente essa luz é uma cadeia do céu, que tal como as cordagens das trirremes, segura o firmamento na sua revolução); dessas extremidades pendia o fuso da Necessidade, por cuja acção giravam as esferas. A respectiva haste e gancho eram de aço; o contrapeso, de uma mistura desse produto e de outros. Quanto à natureza do contrapeso, era como segue. A sua configuração era semelhante à dos daqui, mas, quanto à sua constituição, contava ele que devíamos imaginá-la da seguinte maneira: era como se, num grande contrapeso oco e completamente esvaziado, estivesse outro semelhante, maior, que coubesse exactamente dentro dele, como as caixas que se metem umas nas outras; do mesmo modo, um terceiro, um quarto, e mais quatro. Com efeito, eram oito ao todo, os contrapesos, encaixados uns nos outros, que, na parte superior, tinham o rebordo visível com outros tantos círculos, formando um plano contínuo de um só fuso em volta da haste. Esta atravessava pelo meio, de lés-a-lés, o oitavo. Ora o primeiro contrapeso, o exterior, era o que tinha o círculo de rebordo mais largo; o segundo lugar cabia ao sexto, o terceiro ao quarto, o quarto ao oitavo, o quinto ao sétimo, o sexto ao quinto, o sétimo ao terceiro, o oitavo ao segundo. O círculo do maior era cintilante, o do sétimo era o mais brilhante, o do oitavo tinha a cor do sétimo, que o iluminava, o do segundo e do quinto eram muito semelhantes entre si; um pouco mais amarelados do que aqueles, o terceiro era o que tinha a cor mais branca, o quarto era avermelhado, o sexto era o segundo em brancura[2].O fuso inteiro girava sobre si na mesma direcção, mas, na rotação desse todo, os sete círculos interiores andavam à volta suavemente, em direcção oposta ao resto. Dentre estes, o que andava com maior velocidade era o oitavo; seguiam-se, ao mesmo tempo, o sétimo, o sexto, e o quinto; o quarto parecia-lhes ficar em terceiro lugar nesta revolução em sentido retrógrado, o terceiro em quarto, e o segundo em quinto. O fuso girava nos joelhos da Necessidade. No cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala[3]. Mais três mulheres estavam sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas[4], vestidas de branco, com grinaldas na cabeça – Láquesis, Cloto e Átropos – as quais estavam ao som da melodia das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro. Cloto, tocando com a mão direita no fuso, ajudava a fazer girar o círculo exterior, de tempos a tempos; Átropos, com a mão esquerda, procedia do mesmo modo com os círculos interiores; e Láquesis tocava sucessivamente nuns e noutros com cada uma das mãos. Ora eles, assim que chegaram, tiveram logo que ir para junto de Láquesis. Primeiro, um profeta dispô-los por ordem. Seguidamente, pegou em lotes e modelos de vidas que estavam no colo de Láquesis, subiu a um estrado elevado e disse:

“Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efémeras, vai começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um génio[5] que vos escolherá, mas vós que escolhereis o génio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor, cada um terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa”.

Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e cada um apanhou o que caiu perto de si, excepto Er, a quem isso não foi permitido. Ao apanhá-lo, tornaram-se evidentes para cada um a ordem que lhe cabia para escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vida, em número muito mais levado, do que os dos presentes. Havia-os de todas as espécies, vida de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas, havia tiranias, umas duradoiras, outras derrubadas a meio, e que acabavam na pobreza, na fuga, na mendicidade. Havia também vidas de homens ilustres, umas pela forma, beleza, força e vigor, outras pela raça e virtudes dos antepassados; depois havia também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia com as mulheres. Mas não continham as disposições do carácter, por ser forçoso que este mude, conforme a vida que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre si e com a riqueza e a indigência, a doença e a saúde, e bem assim o meio termo entre estes predicados. É ai que está, segundo parece, meu caro Gláucon, o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros estudos para investigar e se aplicar a isto, a ver se é capaz de saber e descobrir quem lhe dará a possibilidade e a ciência de distinguir uma vida honesta da que é má e de escolher sempre em toda a parte tanto quanto possível a melhor […]

Ora, então, anunciou o mensageiro do além, o profeta falou deste modo: “Mesmo para quem vier em último lugar, se escolher com inteligência e viver honestamente, espera-o uma vida apetecível, e não uma desgraçada. Nem o primeiro deixe de escolher com prudência[6], nem o último com coragem”.

Ditas estas palavras, contava Er, aquele a quem coube a primeira sorte logo se precipitou para escolher a tirania maior, e, por insensatez e cobiça, arrebatou-a, sem ter examinado capazmente todas as consequências, antes lhe passou despercebido que o destino que lá estava fixado comportava comer os próprios filhos e outras desgraças. Mas, depois que a observou com vagar, batia no peito e lamentava a sua escolha, sem se ater às prescrições do profeta. Efectivamente, não era a si mesmo que se acusava da desgraça, mas à sorte e às divindades, e a tudo, mais do que a si mesmo. Ora, esse era um dos que vinham, do céu, e vivera, na incarnação anterior, num Estado bem governado; a sua participação na virtude devia-se ao hábito, não à filosofia. Pode-se dizer que não eram menos numerosos os que vindos do céu, se deixavam apanhar em tais situações, devido à sua falta de treino nos sofrimentos. Ao passo que os que vinham da terra, na sua maioria, como tinham sofrido pessoalmente e visto os outros sofrer, não faziam a sua escolha à pressa. Por tal motivo, e também devido à sorte da escolha, o que mais acontecia às almas era fazerem a permuta entre males e bens. […]

Era digno de se ver este espectáculo, contava ele, como cada uma das almas escolhia a sua vida. Era, realmente, merecedor de piedade, mas também ridículo e surpreendente. Com efeito, a maior parte fazia a sua opção de acordo com os hábitos da vida anterior. Dizia ele que vira a alma que outrora pertencera a Orfeu escolher uma vida de cisne, por ódio à raça das mulheres, porque, devido a ter sofrido a morte às mãos delas, não queria nascer de uma mulher; vira a de Tamiras[7] escolher uma vida de rouxinol; vira também um cisne preferir uma vida humana, e outros animais músicos procederem do mesmo modo. [..]

Assim que todas as almas escolheram as suas vidas avançaram, pela ordem da sorte que lhes coubera, para junto de Láquesis. Esta mandava a cada uma o génio que preferira para guardar a sua vida e fazer cumprir o que escolhera. O génio conduzia-a primeiro a Cloto, punha-a por baixo da mão dela e do turbilhão do fuso a girar, para ratificar o destino que, depois da tiragem à sorte, escolhera. Depois de tocar no fuso, conduzia-a a novamente à trama de Átropos, que tornava irreversível o que fora fiado. Desse lugar, sem se poder voltar para trás, dirigia-se para o trono da Necessidade, passando para o outro lado. Quando as restantes passaram, todas se encaminharam para a planura do Letes[8], através de um calor e uma sufocação terríveis.

De facto, ela era despida de árvores e de plantas. Quando já entardecia, acamparam junto do Rio Ameles[9], cuja água nenhum vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber uma certa quantidade dessa água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda bebem mais do que a medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Depois que se foram deitar e deu a meia-noite, houve um trovão e um tremor de terra. De repente, as almas partiram dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Não sabia, contudo, por que caminho nem de que maneira alcançara o corpo, mas, erguendo os olhos de súbito, viu, de manhã cedo, que jazia na pira.

Foi assim, ó Gláucon, que a história se salvou e não pereceu.»

 

Platão, República, Livro X, 614b-621c.

 

(Texto recolhido por: Miguel Alexandre Palma Costa)



[1] Nome genérico para os festivais religiosos dos gregos. A palavra significa etimologicamente «reunião geral».

[2] Seguindo a interpretação de Conford, o círculo exterior é o das estrelas fixas; o sexto, o de Vénus; o quarto, de Marte; o oitavo, da Lua; o sétimo, do Sol; o quinto, de Mercúrio; o terceiro, de Júpiter; o segundo, de Saturno. Quando se diz que”o oitavo tinha a cor do sétimo, que o iluminava”, está-se a explicar a origem do luar, que, aliás, já fora compreendida por Xenófanes, Parménides, Empédocles e Anaxágoras.

[3] É a famosa «harmonia das esferas».

[4] Em grego, as Moirai; nos poemas homéricos, a Moirai representa, para cada um, o seu destino fixo, inamovível.

[5] No original encontramos a palavra daimon, que a partir de Hesíodo pode designar um ser intermédio entre deuses e homens. A ideia do daimon como uma espécie de «anjo da guarda» está aqui presente, mas à uma tentativa de fuga ao fatalismo implícito na crença popular grega.

[6] Inicialmente, em Platão a phronesis tem um significado prático e ético, mas as sua preocupações mais metafísicas levam-na para a contemplação dos eide (ideias).

[7] Tamiras era um poeta e cantor trácio, que por ter querido rivalizar com as Musas, foi por elas privado de visão.

[8] Palavra grega que significa «esquecimento».

[9] O nome do rio quer dizer «sem cuidados».  


rotasfilosoficas às 22:11

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